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sábado, 25 de fevereiro de 2023

A Função Social do Cavalo no Rio Grande do Sul

 



A frota de Pedro e Diogo de Mendonza, ao desembarcar no rio da Prata, em 1536, daí resultando a fundação de Buenos Aires, trazia cerca de 100 cavalos. Um outro navegante espanhol, Nuñez Cabeza de Vaca, quando aportou na costa de Santa Catarina, rumando por terra para o Paraguai, em 1541, trazia  animais cavalares. Os portugueses por sua vez, desembarcaram cavalos, em São Vicente, por volta de 1540. Também se deve aos jesuítas das Missões Orientais do Uruguai a introdução do cavalo no Rio Grande, o que poderia ter ocorrido concomitantemente com a entrada do gado bovino, não sabendo, entretanto, com precisão a origem próxima dos primeiros equinos aqui aportados, se do Prata, do Paraguai, ou, ainda, do Peru. Remotamente, não há dúvida: como o gado bovino, o cavalar era também de origem ibérica: o tema é igualmente controvertido. Nada disso, entretanto, se reveste de maior significação. O que verdadeiramente interessa, no caso, não são minudências históricas, mas a circunstância de que, ao ser fundado o Presídio do Rio Grande, esta área já era possuidora de imensa riqueza, representada pelos rebanhos bovinos, equinos e muares. Evadindo-se das invernadas missioneiras, onde eram mantidos e explorados de forma até certo ponto racionalizada, passavam a viver em estado selvagem, sendo surpreendidos pelos preadores ou caçadores de gado, ao jeito das primitivas arreadas.

O cavalo foi o fator decisivo para a sobrevivência dos povoadores do Rio Grande e para sua adaptação ao novo meio. O fundador do Presídio, Brigadeiro Silva Paes, logo percebeu a situação, como se depreende de sua correspondência. Dizia ele: "Eu procuro que todos saibam andar a cavalo", pois "o ponto é criar gente de cavalo que saiba fazer o serviço como se costuma cá". Tanto na guerra, como no trabalho e ainda no transporte e na recreação (carreiras de cancha, reta, cultivadas até hoje), o cavalo era indispensável, tendo condicionado a sociedade que se formava e dado origem a uma cultura e seu tipo representativo - o gaúcho. Mais tarde, um governador e chefe d'armas, D. Diogo de Sousa, introduziria profundas modificações na formação de sua tropa, em função das relações entre o homem do pampa e o cavalo, pois verificou que os soldados de infantaria frequentemente desertavam, permanecendo com bravura e estoicismo nas fileiras, quando se lhes dava um cavalo para montar.

Os estancieiros antigos, mesmo os muito ricos, tinham quase sempre um viver agreste, morando em casas que primavam pela falta de conforto e não apresentavam qualquer adorno. Esta rusticidade, entretanto, desapareceria por completo, cedendo lugar a verdadeira ostentação, quando se tratava de artigos de montaria ou de uso do cavaleiro - as esporas de prata, os cabos de rebenque lavrados até a ouro, as guaiacas recamadas de enfeite, as facas finamente ajaezadas, os palas de pura seda, os ponchos de vicunha franjada. O Conde d'Eu, no diário de sua viagem ao Rio Grande, teve ocasião de anotar, minuciosamente: "Sem falar nos estribos e nas enormes esporas que são sempre de prata, os dois arcões da sela, que chamam lombilhos, são muitas vezes guarnecidos de prata; semelhantemente, o rabicho, o peitoral e todas as partes da cabeçada são ornados de placas de prata artisticamente lavradas de mil maneiras; e se rédeas não são todas feitas de correntes de prata, tem enfiadas em todos o seu comprimento cilindros e bolas desse metal. O mesmo sucede com o loro do estribo".

Assim, o homem que vinha estabelecer-se no Rio Grande teria o seu papel histórico condicionado a dois fatores precípuos, um econômico, a exploração pastoril, naturalmente a cavalo; outro político, a ocupação de uma área litigiosa, uma fronteira aberta e em movimento, em cujas refregas o cavalo também foi elemento decisivo. Formou-se, então, nesta extremadura da América portuguesa uma sociedade de pastores e soldados, que teve de defrontar-se e medir forças com uma outra, a da banda de lá, também aglutinada sob o influxo do pastoreio e da guerra, mas com diferentes conotações políticas, ficando assim colocadas, uma diante da outra, em posição antagônica e de beligerância, entrechocando-se e repelindo-se por quase dois séculos.

Esta situação, esboçada quando o Rio Grande dava entrada na história do Brasil-Colônia é muito significativa, podendo ser apresentada como o primeiro argumento contra aqueles que nos iriam acoimar de um suposto castelhanismo. É como diz Moisés Vellinho, num livro fundamental para quem quiser conhecer o Rio Grande, a Capitania d'El Rei: "Pontos de parecença entre os tipos sociais do gaúcho rio-grandense e do gaúcho platino existem, sem dúvida, mas se restringem às peculiaridades decorrentes do mesmo sistema básico de atividades - o pastoreio - , desenvolvido num cenário físico semelhante, e parcialmente fundado, em ambos os lados, na experiência e nas práticas do campeador nativo. Fora disso, porém, fora desses fatores circunstanciais suscitadores de ações e reações equivalentes, tudo o mais são traços que caracterizam tipos autônomos ativamente extremados um do outro, e chamados a desempenhar um drama de fronteira no qual haviam de atuar como inimigos".

Fonte: REVERBEL, Carlos. A função social do cavalo no RGS. Manchete, Rio de Janeiro/RJ, edição 780, 01 de Abril de 1967, pág. 93-94...

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