A função mais nobre da "espada Tupinambá" não era propriamente a de abater inimigos durante o combate, embora isso também acontecesse com frequência. Era com a ibirapema que as tribos litorâneas sacrificavam "os contrários" (como diziam os lusos do século XVI) que tinham capturado em batalha, com um golpe certeiro na região da nuca. O inimigo morto dessa maneira era imediatamente esquartejado e transformados numa espécie de churrasco, que devia ser consumido por todos os membros do grupo - inclusive os bebês, cujas mães faziam questão de besuntar os seios no sangue do inimigo antes de dar de mamar.
É difícil evitar a conclusão de que a antropofagia era um dos elementos centrais da sociedade dos Tupi da costa (e também de grupos como os Guarani e os Juruna). Capturar e devorar os membros de tribos rivais eram atividades que marcavam os homens corajosos e altivos. A justificativa para a prática não era a necessidade de exterminar os adversários ou de conquistar seus territórios, mas a obrigação de manter vivo um ciclo aparentemente interminável de vingança que enobrecia os que participavam dele. "Não sabes que tu e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos", dizem os Tupinambá a uma vítima prestes a ser devorada no relato de frei Claude D'Abbeville, franciscano, que participou da tentativa de colonização francesa no Maranhão no começo do século XVII. A resposta do futuro assado? "Pouco me importa. Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comerdes, fareis apenas o que já fiz eu mesmo. Quantas vezes me enchi com a carne da tua nação! Ademais, tenho irmão e primos que me vingarão".
Além da justificativa social - a chance de ganhar renome e glória - , havia ainda uma justificativa que podemos chamar de religiosa. Só quem matasse e comesse muitos inimigos teria acesso à Terra Sem Mal, o "paraíso" Tupinambá onde haveria eterna abundância de comida (em especial carne de caça), bebida (o cauim, feito a partir de mandioca ou milho fermentados) e festejos. Os grandes guerreiros ganhavam a chance de se unir aos ancestrais igualmente valorosos na Terra Sem Mal depois de sua morte, mas alguns pajés-profetas, os caraíbas, pregavam que era possível encontrar esse jardim de delícias aqui mesmo na Terra. Predicando de aldeia em aldeia, arrebanhavam seguidores e podem ter desencadeado migrações em massa na época pré-colonial, embora seu papel só possa ser documentado com clareza a partir da chegada dos europeus. Os caraíbas também eram conhecidos pela eloquência e por reforçar, em suas pregações, a importância da vingança antropofágica como "passaporte" para a Terra Sem Mal.
É claro que, antes de poder comer o inimigo, é preciso derrotá-lo e capturá-lo. Para atingir esse objetivo, os Tupinambá e outros grupos litorâneos desenvolveram uma série de técnicas bélicas simples e eficazes. Para incursões de longa distância, o costume era montar "esquadras" com dezenas de canoas escavadas em troncos, cada uma delas carregando entre 20 e 30 guerreiros, que deslizavam rapidamente pelos rios ou pela costa até chegar ao território do inimigo. Batalhas navais envolvendo a troca maciça de flechas entre dois aglomerados de barcos podiam decidir a parada, ou então a primeira etapa da refrega acontecia em terra firme, com os arcos sendo usados para acertar inimigos a distâncias mais longas e as ibirapemas servindo como o principal armamento nos duelos corpo a corpo. Chegar a essa fase da luta já era uma proeza, aliás, considerando a letalidade das flechas - medindo cerca de 1,60 metro, com pontas que podiam ser de bambu, de dente de tubarão ou mesmo ferrões de arraia, "dando em qualquer pau o abrem pelo meio, e acontece passarem um homem de parte a parte, e ir pregar no chão", escreve um cronista. Quando o objetivo era atacar aldeias fortificadas com troncos de madeira, as pontas das flechas eram embebidas em algodão e incendiadas, o que produzia um bombardeio rudimentar de coquetéis Molotov voadores, queimando cabanas e forçando os defensores sobreviventes a deixar suas casas.
Os guerreiros que tentavam evitar os golpes das maças dos inimigos ou se proteger das flechas portavam escudos redondos de couro de anta. Se havia a chance de uma campanha militar prolongada, os Tupi preparavam mantimentos que podiam durar por muitos meses, como farinha de mandioca tostada e farinha de peixe (basicamente peixes tostados e moídos), ou então aproveitavam a época da piracema para atacar, o que lhes garantia acesso a um farto suprimento de pescado conforme os peixes se aglomeravam para tentar se reproduzir. A fim de atacar aldeias fortificadas levando o mínimo possível de flechadas, montavam ainda uma espécie de contramuro móvel, uma armação feita de galhos e folhas que permitia que os guerreiros detrás dela avançassem lentamente rumo ao povoado dos inimigos. E, ao cercar a comunidade que desejavam capturar, podiam fazer uso de uma forma rudimentar de guerra química: queimavam grandes quantidades de pimenta de maneira tal que o vento levaria os gases da combustão rumo aos defensores, fazendo com que os olhos deles ardessem.
Quando o combate finalmente acontecia, o principal objetivo era capturar inimigos para o ritual antropofágico, embora os gravemente feridos fossem sacrificados e assados no próprio campo de batalha. O sujeito capturado ia para a aldeia do guerreiro que o derrotara e podia ficar em cativeiro durante meses, recebendo comida, uma rede só para ele e até uma companheira (crianças que nasciam dessa união em geral também eram devoradas). No dia marcado para o sacrifício, todos consumiam grande quantidade de cauim, e o prisioneiro, amarrado ritualmente com cordas, tinha a chance de tentar se vingar antecipadamente atirando pedras em seus captores. Após o ápice do ritual com a pancada da ibirapema, o matador (em geral, o sujeito que capturara o inimigo) tinha de se abster da carne da vítima. Em compensação, ganhava um novo nome, de forma que a longa fieira de apelidos era uma das marcas do guerreiro Tupi que tivera a honra de sacrificar diversos inimigos.
Fonte: LOPES, Reinaldo José. 1499: a pré-história do Brasil. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017, pág. 119-121.
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