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domingo, 25 de setembro de 2022

A Rainha N'Zinga



 A rainha N'Zinga tinha já 58 anos quando os holandeses conquistaram a cidade de São Paulo de Luanda, em 1641. A sua era uma longa história de diplomacia e guerras. "Uma guerreira astuta e prudente", segundo um oficial holandês com quem conviveu, "tão obcecada por lutas que raramente se exercita de outra forma; tão valente quanto generosa: jamais machucaria um português após suas rendição e trata escravos e soldados da mesma forma".

N'Zinga era uma mulher em cargo masculino que como homem se portava. Vestia-se de homem e fazia com que seus 50 ou 60 concubinos se vestissem de mulher. Não permitia que a chamassem de rainha; era rei. Certa vez, quando bastante jovem e ainda era seu irmão que estava no comando de N'Dongo, N'Zinga foi em missão diplomática negociar uma trégua com o governador português em Luanda. Não lhe ofereceram cadeira; N'Zinga não teve dúvidas: mandou que um escravo ficasse de quatro no chão e, durante todo o encontro, enquanto o governador esteve sentado, também ela sentou-se.

Os povos que os portugueses encontraram na África não tinha do primitivismo tupi. Os bantos dividiam-se numa variedade de reinos, a maioria fiéis ao imperador do Congo. Se não tinham a escrita, dominavam quase todas as outras tecnologias de trabalho de metal, cerâmica e tecelagem e organizavam-se numa política complexa. Quando os europeus passaram a agir no continente, entre os séculos XV e XVI, a África estava em guerra, a caminho de organizar-se em grandes nações. O Império do Congo era uma delas, e seu imperador converteu-se ao catolicismo luso.

Próximo a Luanda ficava o N'Dongo, que seguiu independente. Os portugueses trataram de dobrá-lo, mas N'Zinga reuniu seus exércitos e conquistou o reino vizinho de Matamba. Embora já não tivesse domínio do N'Dongo, ainda era vista por boa parte dos seus como a monarca legítima.

Mais de um governador português tentou providenciar sua morte - no entanto, vencidas umas batalhas, perdidas outras, N'Zinga terminava sempre viva, sempre forte, sempre no comando em algum lugar. Em vida, ela apresentou-se a diplomatas e generais os mais diversos como a católica batizada Ana de Souza, ou a rainha em busca de tréguas, ou a canibal em fúria - e era tudo isso. Não à toa, quando os escravos bantos da Bahia apresentaram aos brasileiros seu jogo de capoeira, o princípio da luta era a ginga: a manemolência de estar sempre no mesmo lugar e sempre movimento, sempre sorrindo e sempre na ofensiva, um contínuo em pé estando fluido. "Ginga", a palavra, vem de N'Zinga, a rainha.

Do ponto de vista europeu, a história conta que Angola era dos portugueses. Então os holandeses dominaram o terreno, e aí seguiu a reconquista. E, contado assim, parece que brancos diversos lutaram enquanto os negros escravos futuros observaram. Mas não foi. A habilidade holandesa foi a de aceitar o acordo que N'Zinga havia proposto antes aos portugueses: que não cassassem escravos em seu reino, que não interferissem na política local, que fornecessem armas. Em troca, ela cuidaria do fornecimento continuado de escravos vindos de suas outras guerras. Assim, conquistada a pequena Luanda, com o apoio de N'Zinga os holandeses conseguiram sufocar até quase eliminar a presença portuguesa na terra dos bantos.

A rainha N'Zinga já tinha chegado aos 65 anos, há 41 no poder, e ainda comandava, seus exércitos à frente, embrulhada em suas peles de leopardo - tinha talvez até fome de carne humana - quando seu novo adversário português chegou ao costão africano. A essas alturas, quase todos os reinos já eram fiéis ou a N'Zinga ou aos holandeses. Até o Congo, que a um tempo pareceu irremovível na coluna portuguesa, tinha já se bandeado. Apenas dois reino muito pequenos continuavam aliados de Lisboa. Só que o novo governador de Angola não era como os anteriores. Este novo poderia ser descrito da mesma forma que N'Zinga: um guerreiro astuto e invicto.

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Salvador Corrêa de Sá e Benevides vinha do Brasil. Quando deixou Lisboa nomeado para o cargo africano, carregava duas ordens distintas. Oficialmente, deveria obedecer o cessar-fogo com os holandeses e teria a sua disposição uns 600 homens, angariados entre Portugal e Madeira. Mas d. João IV não nomeou alguém com suas aptidões militares com nenhum outro objetivo que não o da reconquista de Angola.

Era um período crítico: as informações recebidas da Holanda faziam crer que se preparava uma grande expedição, 53 navios, 6.000 homens, que viriam apoiar a colônia no Brasil. Quando Salvador chegou ao Rio, não faltou quem lhe recomendasse prudência. Depois de terem dominado Pernambuco, de terem quase controlado a Bahia, os holandeses talvez quisessem o Rio. O próprio Salvador hesitou - mas o padre João d'Almeida teve uma visão e disse que deveria seguir para a África.

De Lisboa, Salvador tinha partido com cinco navios, umas centenas de homens angariados nas cadeias - "dos piores", segundo Benevides - e pouco dinheiro. Na Bahia, o governador-geral havia dado ordens para que um imposto sobre o açúcar fosse instaurado para financiar sua expedição. Mas Salvador achou melhor pedir o empréstimo voluntariamente. O dinheiro veio. Um dos homens ricos do Rio chegou a levar sua contribuição acompanhado de uma banda. A generosidade carioca e paulista permitiu que Salvador deixasse a Guanabara rumo à África, em 12 de maio de 1648, com 15 navios e 1.400 homens.

E os holandeses deram dois passos em falso. Em Pernambuco, o governo do Brasil holandês ofereceu-se para interceptar a esquadra de Salvador. A chefia europeia julgou que não havia necessidade. Consideravam que a missão, composta de mais índios do que brancos, não tinha qualquer chance. A notícia de que estavam a caminho, no entanto, não chegou a tempo em Luanda, Salvador teve sorte. Quando deu na costa angolana, em agosto, capturou dois pescadores de quem soube que o governador Symon Pieterszoon estava no interior, acompanhado de pelo menos metade de seus homens e mais N'Zinga, numa marcha para eliminar de vez o bastião português. As duas centenas de homens que restaram, ao ver a frota chegando, deixaram Luanda e abrigaram-se nos pequenos fortes em dois morros próximos à cidade.

No dia 15, Salvador Corrêa de Sá e Benevides simplesmente marchou sobre a capital da Angola acompanhado de 800 soldados e 200 marinheiros. Nos navios, deixou uma série de manequins à proa que foram confundidos com mais gente por quem estivesse assistindo de longe. No dia 16, avançou contra o forte de um dos morros. Não conseguiu muito. Então planejou um segundo ataque, organizado em três colunas. Duas avançariam sobre o forte mais protegido por dois lados diferentes, a terceira contra o segundo forte. Mas, na madrugada do dia 17, contando apenas com ampulhetas para marcar o tempo, os ataques seguiram dessincronizados, um após o outro, facilitando aos holandeses a resistência. O fiasco terminou com 150 homens mortos do lado carioca, três do holandês.

E aí os holandeses levantaram a bandeira branca.

Talvez tivessem os canhões avariados, talvez tenham acreditado que os cariocas eram inúmeros, dados os manequins. Talvez simplesmente não estivessem dispostos a lutar até a morte. Após negociações, assinaram a rendição no dia 21. Marcharam em retirada no dia 24, mesmo dia em que, esbaforido, o governador Pieterszoon voltava do interior sem mais qualquer chance de nada que não aceitar o fato consumado. Repentinamente sem aliados, a rainha N'Zinga retirou-se para o interior. Mais de dez anos depois, finalmente assinou um tratado de paz com os portugueses. Morreu ainda no trono, sucedida por uma irmã. Tinha 80 anos.

Fonte: DORIA, Pedro. 1565 - Enquanto o Brasil nascia: a aventura de portugueses, franceses, índios e negros na fundação do país. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012, pág. 174-176.

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