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domingo, 18 de abril de 2021

Línguas africanas no Brasil

 


"Do ponto de vista etnolinguístico, a região de onde se originavam os escravos trazidos para o Brasil é dividida entre dois grandes grupos: o grupo linguístico kwa (chamados tradicionalmente de sudaneses), situado, grosso modo, ao norte da linha do equador, na região do Oeste-Africano; e o banto, que compreende a extensão de terras ao sul do equador. 'Os sudaneses apresentam uma grande fragmentação linguística oposta à unidade substancial das línguas banto'. Nos contigentes de escravos do grupo banto trazidos para o Brasil, predominam 'as línguas étnicas majoritárias: o quimbundo, o quicongo e o umbundo'. No grupo sudanês, 'os seus principais representantes no Brasil foram os nagôs ou iorubás, e os jejes ou povos de língua ewe'.

A composição etnolinguística dos escravos trazidos para o Brasil também se alterou ao longo dos séculos. No século XVI, há um predomínio dos escravos trazidos da Costa da Guiné sobre os escravos trazidos da região do Congo e de Angola. No século seguinte, irão predominar os escravos de língua banto, nomeadamente o quimbundo e o quicongo, exportados de Luanda, que 'se transformou no mais importante porto para o tráfico com o Brasil em geral'. No século XVIII, parece ter havido uma divisão do tráfico em duas correntes principais. A primeira, de tráfico de escravos de línguas banto, ligava a região de Angola a Pernambuco e, principalmente, ao Rio de Janeiro, maior importador de escravos no período, que os repassava para as outras regiões, sobretudo para Minas Gerais. A segunda rota se estabeleceu a partir da troca do fumo produzido no Recôncavo Baiano com os escravos embarcados na Costa da Mina, do grupo linguístico kwa. Assim, 'a Bahia não só teve mão-de-obra escrava em abundância, como manteve quase que o monopólio do tráfico externo com aquela região africana e do tráfico interno dos denominados escravos minas para a região dos garimpos, que parece ter absorvido a maioria deles'. Essa situação perduraria até a primeira metade do século XIX, quando o tráfico negreiro foi extinto; só que nesse período os escravos minas importados pela Bahia e, principalmente, os escravos de línguas bantos importados pelo Rio de Janeiro eram vendidos para as grandes fazendas de café do Vale do Rio Paraíba e, em menor número, para as emergentes lavouras cafeeiras do interior paulista.

No panorama geral dos três séculos de tráfico, há um grande predomínio de escravos trazidos da zona linguística banto. Os escravos de língua banto são amplamente majoritários mesmo na Bahia, no século XVII, quando o tráfico negreiro assume grandes proporções, estimando-se a importação de mais de meio milhão de indivíduos nesse período. Essa situação só iria se alterar com o estabelecimento da copiosa rota de tráfico ligando a Costa da Mina à Bahia, que angariou a essa Província largos contingentes de falantes de línguas kwa, sobretudo o iorubá. Assim sendo, a grande maioria dos estudiosos é unânime em dividir a influência africana no Brasil entre uma influência predominantemente banto na área do Rio de Janeiro (e no Sudeste como um todo) e na área de Pernambuco para o norte, e uma influência predominante iorubá na Bahia.

Esse predomínio banto, sobretudo nos séculos XVI e XVII, reflete-se na formação de línguas gerais africanas no Brasil, de modo que, 'nos dois primeiros séculos, o quicongo e o quimbundo, seguidos pelo umbundo, foram as línguas numericamente predominantes na maioria das senzalas ou as de maior prestígio sociológico'. Apesar de os proprietários de escravos brasileiros evitarem, por razões de segurança, a homogeneidade etnolinguística na sua escravaria, o predomínio dos escravos falantes de línguas bantos, e a semelhança entre essas línguas, deve ter favorecido o uso corrente, durante todo o período da escravidão, de línguas francas de base ora quimbundo, ora quicongo, consoante a predominância de seus falantes fosse na senzala, fosse nos quilombos, onde se encontravam africanos, crioulos e mestiços das mais variadas procedências. Portanto, o veículo da socialização dos escravos segregados na senzala, ou foragidos nos quilombos, pode ter sido, em muitas localidades, não o português precariamente adquirido para o intercurso com os seus senhores, mas uma língua franca de base banto.

É certo que línguas de outros grupos linguísticos africanos também assumiram o estatuto de língua franca no Brasil. A destinação para a região das minas dos escravos falantes de língua do grupo fongbe importados da Bahia resultou na utilização de uma língua franca de base fon, 'que foi atestada, na primeira metade do século XVIII, na região de Vila Rica'. Essa língua veicular fon deve ter convivido com outras línguas francas de base quimbundo que provavelmente eram usadas entre os escravos introduzidos pelo porto do Rio de Janeiro.

Com efeito, o predomínio de escravos falantes de línguas bantos no Sudeste deve ter propiciado o uso corrente de línguas francas de base quimbundo entre os escravos de diversas localidades dessa região. Com o tempo, essas línguas foram caindo em desuso, sendo mantidas apenas em situações especiais e muito restritas, e substituídas por variedades de português reestruturadas pelos afrodescendentes. Uma primeira evidência do uso dessas línguas francas africanas foi a descoberta de Aires de Mata Machado Filho, em 1944, de uma língua veicular de base lexical banto, na localidade de São João da Chapada, no Norte de Minas Gerais. Essas línguas chegaram até os dias atuais, em comunidades rurais negras, que as conservam como línguas secretas, e também como uma forma de afirmação de sua identidade étnica. Tal é o caso da falange, descoberta na comunidade de Cafundó, em São Paulo, e da língua do negro da costa, em Tabatinga, Minas Gerais. Ambas empregam um léxico de base banto (sobretudo quimbundo) com as estruturas gramaticais do português popular.

Se o predomínio de escravos bantos no Sudeste favoreceu o emprego dessas línguas quimbundo na região, o predomínio de escravos falantes de línguas do grupo kwa (majoritariamente iorubás) levou à utilização de uma língua franca iorubá (chamada na Bahia nagô), que era de uso corrente na Cidade da Bahia no século XIX, devendo ter se prolongado até o início do século XX. No plano da resistência cultural e religiosa, o iorubá converteu-se na língua ritual, nos candomblés da Bahia."

Fonte: LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan; RIBEIRO, Ilza (orgs.). O português afro-brasileiro. Salvador: EDUFBA, 2009, pág. 64-67.

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