Gengivas inchadas, esponjosas, arroxeadas, sangrando, hálito fétido, dentes amolecidos e cuspidos, sangramento em volta dos pelos do corpo, logo grandes equimoses, juntas inchadas, hemorragia nasal, olhos injetados, vômito sangrento, ferimentos não-cicatrizados, lassidão, fraqueza, insuficiência cardíaca e morte súbita. Quando os valentes marinheiros saíam de Bristol, no século XVIII, deixando o Dr. Jenner entre as ordenhadoras, tudo isso era tão comum a bordo quanto o enjoo de mar.
Vasco da Gama, em 1497, o primeiro a dar
a volta ao Cabo da Boa Esperança, perdeu desse modo 160 homens de sua
tripulação. A doença intrigou Fernão de Magalhães, o primeiro a dar a volta ao
Cabo Horn, em 1520. Um ano e três meses depois de sair de Sevilha, após passar
três meses de inverno em São Juliano, na Patagônia, as gengivas dos seus homens
“cresceram, cobrindo os dentes, impedindo-os de se alimentar, e eles morreram
de fome”. Jacques Cartier, de St. Malo, descobridor do São Lourenço, passou o
inverno de 1535 ancorado no rio Charles, que divide Quebec, e perdeu 50 homens
em dezembro, quando essa “doença desconhecida começou a se espalhar entre nós
do modo mais estranho jamais visto ou ouvido”. Em fevereiro, dos 110
tripulantes apenas 10 tinham condições de trabalhar, outros 25 morreram em
terra, em março, a despeito das orações contínuas.
O veterano da Armada, Sir Richard
Hawkins, autor de Voyage into the South Sea, seguiu a esteira de Drake,
para circunavegar o globo no Repentance (rebatizado, por ordem da rainha
Elizabeth I, com o nome de Daintie), liberalmente aprovisionado em 1593,
em Plymouth, com carne de boi, de porco, biscoitos e cidra, e foi atacado pela
doença no Equador. Nos seus 20 anos no mar, Sir Richard admitiu ter
visto 10.000 casos.
O escorbuto era uma doença identificada
pelo número de mortos. Os comandantes se perguntavam se seria uma infecção dos
misteriosos fomites ou provocada pela preguiça evidente de suas vítimas,
por miasmas demoníacos, entre um convés e outro, o sal do ar, o trabalho duro,
beijar mulheres em terra, a comida. A ração diária na marinha, em 1615, era de
236 gramas de queijo, 118 gramas de bacon e 118 de manteiga, meio quilo de
biscoitos, geralmente bichados e “fedidos como mijo”, mas toleráveis com o meio
litro de cerveja.
O escorbuto no mar era grave e rápido,
raro entre os oficiais, até mesmo entre os oficiais subalternos, atacando mais
rapidamente nas viagens que começavam na primavera. Nos porões-prisões
ancorados ao largo de Woolwich, no Tâmisa, o escorbuto era um carrasco muito
ocupado. Os traficantes de escravos queixavam-se que o número de vítimas da
doença, nos seus navios superlotados, custava a eles a perda de vidas valiosas.
O escorbuto em terra era mais insidioso no seu ataque às guarnições, às cidades
cercadas, aos Países Baixos, ao norte da Rússia e Escandinávia e às legiões
romanas, quando elas atravessavam o Reno.
Felizmente para os romanos, os
holandeses tinham uma erva curativa, bem como os índios das margens do São
Lourenço. Atônito com os casos dos índios que se recuperavam numa semana,
tomando chá de agulhas verdes de pinheiro, Jacques Cartier mandou fazer o chá
para sua tripulação e, satisfeito, viu todos curados, sendo sua alegria maior
pelo fato de não precisar repetir a desagradável tarefa de abrir o corpo de um
amigo morto na neve, sem descobrir a causa da terrível doença.
(...)
Naquela época, acreditava-se que, para
cada doença enviada por sua ira, Deus, misericordiosamente, plantava uma erva
para curá-la. A medicina herbal ecoa por toda a Bíblia.
O herbalista e barbeiro-cirurgião de
James I, John Gerarde (1545-1612), em 1597 proclamou divinamente a descoberta
da erva do escorbuto. Essa cochlearia officialis, com 30 centímetros de
altura e flores brancas, que crescia perto do mar, é uma das quadripétalas da
família das crucíferas, parente dos nabos, rabanetes, agrião, mostarda e goivo
amarelo. O brado das ruas “compre a erva do escorbuto!” era bastante comum em
Middleton e no livro de Decker, The Roaring Girl, de 1611. Em 1661 era
possível comprar cerveja de erva do escorbuto. Em 1764, o avô de Byron,
Almirante “mau tempo Jack”, prudentemente incluiu entre as provisões do Dolphin,
para a viagem ao redor do mundo, a erva do escorbuto e cocos.
Os marinheiros estavam descobrindo que
frutos tropicais comidos em terra curavam o escorbuto a bordo. Laranjas azedas
e limão eram a ração favorita de Sir Richard Hawkins, e o cirurgião da
Companhia das Índias Orientais, John Woodall (1569-1643), no The Surgeon
Mate, em 1612, recomendava o armazenamento de suco de limão a bordo de
todos os navios da companhia. Os holandeses preferiam Sauerkraut, e o
Capitão Cook recomendava geleia de cenoura e mosto de cerveja. Vinagra, para
tomar ou lavar o convés, óledo de vitríolo e enterrar o paciente até o pescoço,
na terra fria, todos esses métodos tinham seus defensores, embora mal
orientados.
James Lind (1716-94), de Edimburgo, nove
anos no mar, com a marinha, bravamente denunciou as acomodações para os
doentes, a comida rançosa, a água imunda e deixou o mar para ser médico do
Hospital Naval Haslar, em Portsmouth, que em 1790 tinha ainda 1.754 casos de
escorbuto. Lord Anson perdeu três quartos da sua tripulação na viagem ao
redor do mundo, em 1740-44. Em 1778, a Frota do Canal, depois de 10 semanas no
mar, tinha 2.400 casos de escorbuto. Porém, em 1753, o Tratado sobre
escorbuto, de Lind, determinou um curso entre as supostas causas e supostas
curas que flutuavam ainda no mar da ignorância.
Em 20 de Março de 1747, a bordo do Salisbury,
voltando para casa, tendo saído há um mês de Plymouth, Lind realizou uma
experiência clínica. Doze doentes de escorbuto, na enfermaria de bordo, na
proa, alimentavam-se com mingau no desjejum, caldo de carne de carneiro e pudim
no almoço e sagu, passas de Corinto e passas de uvas no jantar. Lind dava a
cada um meio litro de cidra por dia. Dois tomaram óleo de vitríolo. Dois,
vinagre. Dois, água do mar. Dois chuparam laranjas e limão, e dois um preparado
de pó de alho, rabanete, bálsamo-do-peru e mirra. Os dois que receberam laranjas
e limão estavam aptos para o trabalho dentro de seis dias, e passaram a tratar
dos que continuavam doentes.
Johannes Bachstrim (1686-1742), de
Leyden, 13 anos antes havia declarado que o escorbuto do mar e o de terra eram
uma única doença que só tinha uma cura: comer verduras. Lind afirmou a mesma
coisa:
O marinheiro ignorante e o médico
culto sentem necessidade, igualmente, e com a mesma intensidade, de vegetais
verdes e das frutas frescas da terra.
Lind receitou suco de limão ou de lima.
Ele havia encontrado o remédio
específico, sem ideia de como funcionava, para uma doença cuja causa ninguém
conhecia.
Um ano depois da sua morte, o
almirantado concordou com ele. Duzentos gramas de suco de limão, com 100
gramas e meio de açúcar, eram distribuídos para toda a tripulação depois de
seis semanas no mar [grifo nosso]. O escorbuto desapareceu como o Holandês
Voador.
Mais tarde, o suco de limão passou a
ser preservado com a adição de um quarto de seu volume de rum [grifo nosso].
Os donos de navios mercantes, a partir de 1854, foram obrigados a “servir suco
de limão ou de lima à tripulação, sempre que os homens haviam consumido alimentos
salgados durante 10 dias”. As limas das Índias Orientais eram preferidas aos
limões do Mediterrâneo e, por muito tempo, a palavra passou a designar os
ingleses nos portos da América (embora durante um tempo os limeys fossem
também os “novos amigos” que desembarcavam na Austrália). As limas,
estranhamente, não eram tão eficazes contra o escorbuto quanto o limão. A
viagem em busca do Pólo Norte, comandada por Sir George Nares em 1875,
quando só foi usado o suco de lima, teve casos de escorbuto, e a de Sir Alexander
Armstrong, em 1850, com suco de limão, não teve nenhum. Às vezes, 85% dos
pacientes de Florence Nightingale, em Scutari, tinham escorbuto, apesar das
rações de suco de lima, mas isso logo foi explicado pelo fato de as limas terem
ficado todas esquecidas em Balaclava. A humanidade teria de esperar 50 anos
pela resposta certa.
Fonte: GORDON, Richard. A assustadora
história da medicina. (trad. Aulyde Soares Rodrigues). Rio de Janeiro:
Ediouro, 7ª. Ed., 1996, pág. 52-55.
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