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domingo, 27 de dezembro de 2020

A Festa de São Benedito dos índios

 


De repente ouvi ao longe rumor um tanto confuso, como se alguém batesse num tambor cuja pela estivesse molhada. Que história seria essa? Pela manhã vim a saber que se tratava da festa de São Benedito, divindade de grande devoção dos índios. Eles faziam preparativos para essa festa uns seis meses antes e guardavam dela uma recordação pelos outros seis meses do ano. Desde o momento em que esse tambor começa a ser tocado, não para mais, nem de noite nem de dia. Não deixei de ir me divertir um pouco nessa festa que se realizava numa povoação chamada, se não me engano, destacamento. O Sr. X. fez-me companhia. Em todos os tetos em que entrávamos bebia-se “câouêba” e cachaça, e a pretexto de se cantar, berrava-se. Mantinham-se os homens sentados tendo entre as pernas um tambor primitivo fabricado com pequeno tronco de árvore oco coberto por um pedaço de couro de boi; outros homens esfregavam uns pauzinhos num instrumento feito de bambu todo entalhado. Ao som desse Charivari, mulheres, mesmo velhas, dançavam devotamente um desgracioso cancã que mereceria certamente a reprovação de nossos virtuosos agentes de polícia. Depois de se ter dançado bem e melhor bebido e urrado, numa casa, ia-se fazer o mesmo numa outra habitação. Numa delas tive a coragem de beber numa espécie de cabaço a tal “câouêba”, o que fiz, aliás, para despertar simpatias e conseguir depois me permitissem uns retratos. Não ignorava como se prepara essa bebida: sabia que as mulheres idosas (são elas sempre as encarregadas das funções mais importantes) mastigam raízes de mandiocas antes de deitá-las numa vasilha; cada um de sua vez cuspia nessa panela o conteúdo das suas bocas e deixavam a massa fermentar. Como se vê, em mim, o amor à arte sobrelevara o instinto da repugnância. Dessa casa passei a outra e nessa não existiam representantes do “belo sexo”; apenas um índio cantava ao som de um violão uma modinha suave e monótona que tinha encanto particular. Sentei-me ao seu lado e fiquei surpreso de ver que me tornei motivo dos improvisos desse cantador. O seu estribilho era este: 

Su Bia ao sertão guerea

Matar passarinhos

Su Bia ao sertão

E também souroucoucou

 

M. Biard dans la montagne

Désire tuer petits oiseaux,

M. Biard dans la montagne

Cherche aussi serpentes dangereux

 

Ficaram todos admirados de me ver rir a bandeiras despregadas dessa cantiga que me homenageava, embora com suas pequenas imperfeições. Afinal chegara o momento ansiosamente esperado: surgiram duas figuras importantes. A primeira era um índio alto, revestido de uma túnica branca a lembrar um pouco o roquete de um coroinha e tendo na mão um guarda-chuva vermelho ornado de flores amarelas; na outra mão trazia uma bandeja que também se pendurava de um velho chale de franjas amarrado à cintura como um talabarte. Dentro da bandeja vinha São Benedito, que, não sei por que, é preto, todo cercado de flores. Ali se colocam as ofertas feitas ao santo. A segunda personagem, digna de fazer parte do exército do imperador Soulouque, cingira uma farda azul celeste toda enfeitada de chita em xadrez encarnado; usava dragonas como as do general La Fayette, e na cabeça um chapéu de pontas, fenomenal no tamanho e encimado por um penacho que já fora verde. Como emblema ostentava uma rodela com três cerejas bem vermelhas. Esta última figura é o comandante. Para se merecer essa graduação torna-se indispensável possuir umas pernas de resistência superior à de todas as outras da Terra, pois durante as cerimônias o capitão não cessa de dançar. Ele precede ao cortejo, sempre num passo de dança, com uma baliza nas mãos. A princípio, pensei tratar-se de um círio. Atrás dele vai o homem de guarda-sol vermelho, levando o santo; depois os músicos em duas fileiras, e em torno da imagem as velhas devotas no seu cancã. Meio escondidas nos postigos ou nas portas se surpreendem jovens e bonitas cabeças. Diante de cada pessoa convidada para o banquete, o cortejo parava; o capitão entrava, a dançar, e dava uma volta pelo interior da habitação. Dali se passava a outra casa e, nesse passo, chegaram à igreja toda enfeitada com palmeiras; a iluminação era feita por meio de cabaças cheias de azeite. Fora preparada a mesa defronte do altar; por precaução estenderam-lhe por cima uns panos sem dúvida com receio de investidas das aranhas e de outros bichos malfeitores. Trancaram São Benedito na caixa, após terem retirado as ofertas, e nós então voltamos. 

Em caminho vim imaginando o desenho dessa festa grotesca, mas para leva-lo a efeito precisava de pormenores que só me seria dado obter com o auxílio do Sr. X. Dessa vez ele me cedeu um dos seus índios. Digo assim porque é costume na província do Espírito Santo tomar-se conta dessas criaturas desde meninos, embora pertençam a alguma instituição orfanológica; comprometem-se a cria-los e vigia-los até uma determinada idade, não como escravos, mas apenas como empregados. A começo obtive generosamente um modelo para meu quadro, porém depois tudo transcorreu como anteriormente: os pormenores, o chapéu de sol vermelho, os tambores, a vestimenta, o chapéu de dois bicos com o emblema cor de cerejas, nada pude obter e tive de suspender o trabalho. 

Fonte: BIARD, Auguste François. Dois anos no Brasil. Brasília/DF: Senado Federal, 2004, pág. 86-88.

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