Costumeiramente, o marco simbólico daquilo
que se convencionou em denominar “início da História” é a invenção da
escrita – o que teria acontecido há cerca de 4 mil a.C. na Suméria, sul da
Mesopotâmia. Só que a escrita é um indício de um processo dinâmico e complexo
que já se desenrolava desde a Revolução Agrícola ou Neolítica (iniciada mais ou
menos há 10 mil a.C.) que é o surgimento daquilo que iremos alcunhar como civilização.
A escrita é um elemento dentro deste processo (elemento muito importante,
sem dúvida!), mas não é o único. Junto à escrita, temos outros elementos
centrais: o desenvolvimento das técnicas de irrigação aplicadas à agricultura,
uma sociedade mais complexa do ponto de vista da divisão do trabalho e o
surgimento do Estado.
Se
a Revolução Neolítica trouxe o gradual domínio do meio natural, com as
primeiras lavouras e os primeiros rebanhos domesticados, trouxe também uma
necessidade cada vez mais premente ao novo modo de vida sedentário: o acesso
à água. As primeiras sociedades humanas mais complexas do ponto de vista de
organização socioeconômica são
dependentes da água. Não por acaso, as quatro primevas que são o Egito Antigo,
a Mesopotâmia, a civilização do Indo e a antiga chinesa estão intimamente
vinculadas a grandes rios, em sua formação histórica. Não existiria o Egito sem
o rio Nilo, na África, bem como a Mesopotâmia (“terra entre rios”) é relembrada
pelas tamareiras às margens do Eufrates e do Tigre. Por sua vez, o rio Indo, na
Ásia, nomeia a própria civilização, e o rio Amarelo fez surgir os primeiros
assentamentos chineses regulares. Aproveitar esses recursos hídricos tornou-se
fundamental. As primeiras cidades desenvolvem-se no sentido de terem água em
abundância, com canais, aquedutos, diques, etc., que trazem a fertilidade aos
campos de cereais e refresco aos animais e homens. Os rios ditam o cotidiano e
impõem a obrigação de usar esse bem precioso de forma racional. Enchentes e
períodos de estiagem precisam ser compreendidos. Desenvolve-se a matemática, a
observação dos astros (astronomia) e das estações, a arquitetura, a engenharia,
enfim, o saber não-braçal, a capacidade de abstração.
Esse
“saber não-braçal” é o gancho para descrevermos este outro processo: a
sofisticação da divisão do trabalho. No Paleolítico, homens caçam, mulheres
coletam; no Neolítico, homens pastoreiam, mulheres plantam; no alvorecer da
civilização, já não existem mais essa divisão por gênero, mas por grupos
sociais. A grande maioria é campesina, cuida das plantações e sentinela os
rebanhos. Essa grande massa também serve como mão-de-obra gratuita para as
grandes obras públicas como templos e canais. Um conjunto intermediário
encarrega-se de funções um pouco mais especializadas: artesãos, ceramistas,
metalúrgicos, comerciantes, escribas, militares, entre outros. E uma pequena
elite é incumbida da tarefa de governar. Dentro desta lógica, a função de cada
um é revestida de uma sacralidade, onde a sociedade é vista como um único
organismo vivo e pulsante, em que “nada está fora do lugar”.
As
operações intricadas que o uso dos recursos hídricos exigia e a crescente
especialização do trabalho resultam diretamente no estabelecimento do Estado
– isto é, uma ordem social e jurídica reconhecida em que os esforços de toda
uma comunidade são regulados e dirigidos dentro de um propósito. Em outras
palavras, há uma autoridade central em que todos contribuem para seu poder e
que, em alguns casos, pode usar a coerção (legal ou física) para reforçar sua
própria autoridade. Cabe ao Estado gerir os recursos (grãos e metais) e
redistribuí-los como lhe aprouver.
Porém,
o Estado na Antiguidade não surge numa perspectiva de contrato entre homens, em
que todos renunciam à liberdade absoluta por um bem maior coletivo. O Estado
antigo é uma teocracia, sobretudo.
Teocracias são regimes políticos em que não há diferenciação entre
religião e política. Em resumo, a ordem mundana, dos seres humanos ordinários é
mera continuidade da ordem divina. Contribuir para a desordem antes de ser
crime, é pecado, é afronta aos deuses ou a um deus específico. No Egito Antigo,
o faraó acumulava todas as funções políticas, militares e religiosas, não por
ser o mais apto, o mais inteligente. Ele já tinha naturalmente essas qualidades
porque antes de tudo era um “deus-vivo” encarnado e presente entre os mortais.
Na Mesopotâmia, o patesi, o rei-sacerdote de cada cidade suméria, é
representante da vontade dos deuses, com eles conversa e roga suas bençãos. Na
China, os mais antigos imperadores eram considerados “filhos do Imperador de
Jade” (a suprema entidade celestial).
A
escrita, por sua vez, documenta todas essas transformações, descreve no sentido
de delimitar tempo e espaço dos acontecimentos. Muito embora, seu objetivo
inicial não tenha sido mais que servir como instrumento contábil para registrar
o quanto de trigo ou cevada cada camponês entregava aos templos, isto é, ao
Estado.
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