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quinta-feira, 28 de maio de 2020

O Curupira - um estudo de 1887 - Parte 01


"LENDAS MYTHOLOGICAS

O Korupira

Entre os differentes mythos brazileiros é incontestavelmente o mais antigo o do Kurupira, companheiro inseparavel das crenças populares de todos por onde se extendeu o abanhecenga, ou lingua geral, pelo que parece ser verdadeiramente indigena, senão antes, legado pela população primitiva que habitou o Brazil, em épocas anti-Colombianas e que descendia dos invasores Asiaticos.

Nos Nahuas passou aos Karaibas e destes aos Tupis e Guaranis. Parece ser uma das divindades secundarias sujeitas a Tlaloc. Como as que presidiam os ventos, as chuvas, a abundancia, o milho, as montanhas, havia tambem a que presidia e protegia as florestas.

Por Venezuela, pelas Guyanas, pelo Perú e pelo Paraguay estende-se o dominio do Korupira; vae do Karaiba até o Guarani.

Anchieta (1560), Fernão Cardin (1584), Laet (1640) e Acuña (1641) fallaram e acreditaram mesmo em sua existencia. A civilisação invadindo os centros em que a rusticidade se aninha e devassando os sertões, tem modificado ou feito desapparecer não só as lendas e contos primitivos, como a língua, envolvidos na onda do esquecimento.

Entre elles vae tambem desapparecendo a do Korupira, adulterada aqui, confundida ali, e por toda a parte mais ou menos modificada segundo o cunho especial do meio em que existe e os emprestimos que a civilisação lhe tem feito.

O Korupira, o nunem mentium, de Marcgravius, que, segundo Simão de Vasconcellos, é o espírito dos pensamentos, quer o padre João Daniel, que por espaço de 17 annos foi missionario no Amazonas, entre os annos de 1780 e 1797, que seja um espirito habitante das florestas, que não pratica só o mal, porem muitas vezes tambem o bem. Para mim não é tambem o espirito comico (neckischer waldgeist) do venerando Dr. Martius.

A crença mais geral, comtudo, confirmada pelas differentes lendas é que, o Korupira é o senhor, a mãi, (cy), o genio protector das florestas e da caça, que castiga os que as destroe, premiando muitas vezes aquelles que o obedecem, ou de quem se compadece.

A crença do genio das florestas vae tambem ao centro da Africa, onde acreditam 'que ha um demonio que anda mettido pelo matto sempre á espreita para fazer das suas. Para afugentar o porco sujo, como chamam, teem os africanos como infallivel a simples presença de um diabo fingido, que se veste de palhas e cobre o rosto com uma mascara'. Ossaim sempre armado do seu abêbê, facão de latão, seria para mim o Korupira com seu machado de casco de yaboty, se tivesse os pés ás avessas.

O Korupira, como genio mysterioso e cheio de poder, apresenta-se sempre sob varias formas e sob varias disposições de espirito.

Assim ora é phantastico, imperioso, exquisito, ora máo, grosseiro, atrevido, muitas vezes delicado e amigo, chegando mesmo a se apresentar bonanchão e compassivo, ou ainda fraco, tolo e facil de se deixar enganar. Apesar de tudo tem a virtude de ser agradecido ao bem que se lhe faz, impondo comtudo condições que, quando não cumpridas são fataes.

O estrondo que se repercute ao longe, pelas florestas, das arvores velhas que cahem; o barulho que fazem alguns pica-páos, cavando o alimento pelos troncos, ruido que echôa surdamente pelas mattas, querem que seja tambem o Korupira a causa delle.

Dizem os credulos, quando isso ouvem, que é o Korupira como seu machado, feito do casco de Jaboty (Tapajós), que anda batendo pelas çapopemas das arvores, para ver se estão seguras, e podem resistir ás tempestades.

No alto Amazonas dizem que bate com o calcanhar e no baixo, em Obidos, que com o seu penis, que é de tamanho extraordinario.

É o Korupira quem nos mostra ou esconde a caça; quem nos revela os segredos das florestas, as virtudes medicinaes das plantas, e nos dá os productos d'estas etc., conforme o seu bom ou máo humor, ficando furioso sempre que sente o piché do couro queimado d'alguma caça.

Segundo as localidades assim são as formas sob os quaes se mostra tomando a feminina quando se apresenta aos homens, e querem mesmo alguns que haja Korupiras de ambos os sexos ou que seja casado com alguma tapuya velha feia e má que o auxilia nos seus malificios e da qual dizem que tem tambem filhos, o Benjamin dos quaes é o Çacy ou Korupira pitanga ou mitanga.

Em Nogueira e Teffé dizem que a Korupira tem lindos cabellos, uma só sobrancelha no meio da testa e que as mamas são sob os braços.

Se não fosse a disposição dos pés do Korupira, eu diria tambem que era o genio dos poetas Silesianos, transformado pelos meios e pelo tempo.

A afinidade entre o Korupira e Rubenzahl, o genio dos Montes Sudetos na Alemanha, é grande. Este domina e vive nas florestas, distribuindo o ouro de suas montanhas rochosas, aquelle os productos vegetaes e protegendo a caça.

A união intima que ha entre o povo que fallou o abanêenga e o Korupira, o acreditar-se n'elle entre as tribus selvagens; a propriedade que tem este de conservar sempre, sob qualquer aspecto que se apresente, os pés voltados para traz para illudir o seu andar, separa a lenda brazileira da allemã e africana.

Filia-se comtudo ao berço semitico. Com effeito na Asia, segundo as autoridades de Plinio, Pomponio Mela, Solemo e outros, como o Dominicano Frei Gregorio Garcia havia a crença nos 'Hombrem con los pies bueltos a revés', assim como nos que tinham 'orejas tão grandes, que para dormir la uma les servia de colchon, i la otra de manta de cobrir-se'. A que o mesmo frade pregador cita de 'hombres com la pata tan grande, que les servie de defeza para el sol, i agua'; tambem eu ouvi no Tapajós, ligado ao Kurupira, assim como Herbert Smith tambem a ouvio em Santarem, sendo comtudo isso, corrente na Asia, d'onde a Alemanha importou no tempo das Crusadas.

O Vidhr, o deus das  florestas é um tivar, ou divindade dos Aryanos, filhos de Odhin, chamado tambem o Silente.

A crença oriental no solo Americano acclimou-se, modificando-se com o correr dos seculos, como sóe modificar-se tudo quanto não tem uma litteratura e se conserva pela tradição.

Em Venezuela o Máguare; na Columbia o Salvage, no Perú o Chudiachaque, dos Incas, e na Bolivia o Cauá, dos Cocamas é o mesmo genio do Amazonas, que se apresenta sob as mesmas formas, excepto em alguns lugares da Montaña peruana onde é uma especie de satyro, cabelludo até a cintura, quase negro e raptor de mulheres que leva para suas orgias.

Em Venezuela tambem elle gosta de perseguir e seduzir o sexo fraco, pelo que, penso, que n'essas republicas, o Korupira é solteirão.

O Pokái dos Makuchys, que habitam as florestas da serra de Roraimá, é o mesmo mytho. Para elles é um pequeno caboclo cabelludo, de nariz comprido, com os pés voltados para traz, coxo de uma perna, e servindo-se do calcanhar do pé desta para bater as çapopemas.

O Iworokõ, dos Parikys, do rio Yatapú, também é o mesmo mytho.

No Amazonas, geralmente, é um tapuyo pequeno, de 4 palmos, (Santarém) calvo ou de cabeça pellada (piroka), com o corpo todo coberto de longos pellos, (Rio Negro); com um olho só (RIo Tapajós); de pernas sem articulações (Rio Negro); massiço e sem anus (Pará); de dentes azues ou verdes e orelhas grandes, (Solimões); e sempre com os pés voltados para traz e dotado de uma força prodigiosa.

É o Mutaycé, do Padre Acuña.

Ouvi tambem no RIo Negro dizer: 'Korupira uatá ramé o mo ieké mamé opulare i retemá uaá o mopuka o moçupare potare ramé mira', isto é: que quando o Kurupira quer perder a gente encolhe ou espicha as pernas.

Esta versão já é producto europeu, participa do conto do Botas de sete leguas.

O tapuyo, posto que creado na sociedade dos portuguezes, outr'ora só fallava a lngua geral, que alguns deste tambem fallavam, e foi d'ahi que chegou até nós muitos dos contos populares portuguezes referidos hoje ainda na lingua geral, mas acclimados ás scenas Amazonenses.

Habita o centro das florestas, quase sempre pelos castanhaes, e faz as suas moradas no ôco dos páos. Convida a gente para vivér no matto, arremeda todos os quadrupedes e aves, e d'isso se aproveita para enganar e attrahir a caçador, que suppondo perseguir um animal, o acompanha. Ás vezes chama os homens encantando-os com o seguinte canto:

Cha uatá, uatá
Ce rapé rupi
Cha uatá, uatá,
Ce rakakuera
Yure uatá, uatá.

Logo que o Korupira o distrahe e o leva para longe, cessa de cantar e deixa-o perdido. Não gosta que se mate animal algum que ande em bandos.

Quando algum individuo, dizem no Rio Negro, depois de tres dias de nada comer, o que e vulgar, mata algum porco do matto, provoca as iras do korupira que dá longos uivos que aterrorisam os matteiros.

Algumas tribos do alto Rio Negro não matam o yakamin nem a anta para não offenderem o korupira. Se por acaso alguem mata, as mulheres se reunem em torno do animal e choram para abrandar as suas iras.

O coração e o figado são as iguarias que mais aprecia. Segundo uns, com essas visceras faz farinha, segundo outros, oleo com que se unta. É inimigo de crianças.

Dizem que se pode chamar o Korupira, mas para isso é preciso ser-se pagé. Quando este quer se entender com aquelle, veste-se com estopa da casca da castanheira, e canta:

Tim tapetim sauètipê
Tupetim sauêtipè
Aituçaui aituçaui

Ás vezes os filhos do Korupira, ouvindo esse canto, illudem a mãe e vem ter com o pagé, repetindo-lhe a cantiga; porém, se a mãe dá por falta delles os vem buscar. Elles transformam-se então em páos ou pedras, e por isso é que aquelles e estas dão logo, quando friccionados ou batidas. 

Esse Korupira, Gonçalves Dias diz que é o espírito máo, que habita as florestas."

Fonte: MUSEU BOTANICO DO AMAZONAS. Vellosia, 1887, volume 1. Manaus/AM: Typographia do Jornal do Amazonas, 1888, pág. 90-94.



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