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domingo, 24 de novembro de 2019

Imigração Árabe no Brasil - Parte 01


"A Imigração Árabe para o Brasil inscreve-se entre aquelas que formaram os contingentes mais recentes, Clark S. Knowlton, um dos primeiros a estudar com profundidade o problema migratório árabe, notou os fluxos modestos ocorridos até 1895, cujo adensamento se daria a partir de 1903. Embora vindos de países ou regiões distintas como o Líbano, Síria, Turquia, Iraque, Egito ou Palestina, a união comum entre esses povos acontecia através da língua ou dos dialetos derivados do árabe. Dessa forma, não se pode falar de uma imigração de um país localizado para o Brasil, como no caso de portugueses ou italianos, mas sim povos com diferentes organizações políticas e um fundamento comum na língua e práticas culturais.

Alguns autores, como Heliana Prudente Nunes, localizam a origem da imigração na chegada ao Brasil de Youssef Moussa, em 1880, originário da aldeia de Miziara, norte do Líbano. Outros pesquisadores, como Jorge S. Safady, remontam esse pioneirismo a chegada dos irmãos Zacarias, no Rio de Janeiro, em 1874, ou mesmo identificam um remoto Antun Elias Lupos, libanês de grandes propriedades naquela cidade, que teria oferecido em 1808 uma quinta em São Cristóvão para moradia de D. João VI, depois transformada no Paço Imperial de São Cristóvão. Seja qual for o marco inicial, ideia de resto pouco significativa para a compreensão do fenômeno, sua importância reside em apontar para a contemporaneidade do processo migratório.

O problema religioso é um dos pilares para a compreensão da corrente migratória árabe. No Império Otomano de fé islâmica, as comunidades cristãs da Síria, Líbano e Egito sofreram perseguições e os autores mais ligados à panegírica da colonização árabe sempre fizeram questão de destacar os sofrimentos passados nos mãos dos turcos. São citados como fatos importantes o massacre de 1860, a extensão do serviço militar obrigatório aos cristãos em 1909, ou a condição de cidadãos de segunda classe dentro do Império. Em Beirute e Trípoli, os cristãos não podiam andar nas calçadas, sendo frequentemente molestados pelos muçulmanos.

O maior contingente de imigrantes portanto é de cristãos, vindos em grande parte do Líbano e da Síria, sendo bem menores as levas saídas de outros pontos do antigo Império Otomano como Turquia, Palestina, Egito, Jordânia e Iraque. Entre 1871 e 1900 apenas 5400 pessoas tinham aportado no Brasil. Até 1892 todos os imigrantes recebiam passaportes turcos, o que para maioria síria e libanesa cristã era uma desqualificação pois os identificavam com o opressor muçulmano. Depois dessa data, os sírios passaram a ter um estatuto próprio, embora o Líbano fizesse parte da Síria até a Primeira Guerra Mundial, quando as grandes potências ocidentais vitoriosas fragmentaram o Império Otomano, que tinha tomado, durante a conflagração, o partido da derrotada Alemanha.

O cristianismo oriental divide-se em quatro grupos: os Maronitas, predominante no Líbano; a Igreja Ortodoxa, presente no Líbano e em maior número na Síria, porém com grande penetração no mundo eslavo; os Melquitas, na Síria, Palestina e Egito e os Coptas, no Egito. Em termos gerais, os Maronitas têm como chefe espiritual o Patriarca de Antióquia, lêem a Bíblia em árabe e estão em união estreita com o Igreja Católica Romana, pois o Patriarca é confirmado por Roma. Os Melquitas estão sujeitos ao Patriarca de Antióquia, estão vinculadas à Santa Sé, mas seguem o ritual bizantino. Os Ortodoxos crêem conservar a doutrina e o ritual dos Apóstolos, daí a denominação, não possuem um Papa nem outra autoridade suprema, mas uma federação de igreja autônomas, que celebram o culto em sua própria língua e costumes. Os Coptas, por fim, acreditam somente na divindade de Cristo, recusando a sua humanidade. Sua linguagem com maiúsculas gregas, sendo uma 'língua morta' só usada em caráter religioso. O chefe espiritual é o Patriarca de Alexandria. Essas diferenças religiosas, presentes em algum grau em 95% dos imigrantes árabes, foram transplantados para o Brasil, tornando-se uma das características da colônia. Vale ressaltar que o grupo islâmico que imigrou sempre foi menor, sendo o número de árabes protestantes pouco significativo.

Um segundo fator importante para a saída de sírios e libaneses das regiões de origem, assinalado por Oswaldo Truzzi, foi a estrutura agrária. A propriedade de pequenos lotes de terra arável, onde o trabalho era feito pelo núcleo familiar, começou a sofrer limites para a partilha entre os filhos, já que o parcelamento chegara ao ponto de não mais suprir o sustento das novas famílias formadas. Diante desta realidade, iniciou-se a emigração. A condição de pequenos proprietários nos seus países de origem também teve reflexos nas escolhas profissionais que fariam no Brasil.

A viagem para a América tinha como ponto de partida os portos de Beirute e Trípoli. Por meio de agências de navegação francesa, italiana ou grega, dirigiram-se para outros portos do Mediterrâneo como Gênova, na Itália, onde às vezes esperavam meses por uma conexão que os levassem para o Atlântico Norte ou Sul (Rio, Santos ou Buenos Aires). Muitos imigrantes com o objetivo de chegarem aos Estados Unidos, destino principal da imigração árabe, acabavam vindo para o Brasil ou Argentina enganados pelas companhias de navegação. Afinal, explicavam, tudo era América. A imigração para os Estados Unidos começou na mesma época, a década de 80 do século passado, acreditando-se que atualmente haja entre 1 e 2 milhões de americanos de origem árabe vivendo naquele país.

Desembarcados no Rio ou em Santos, a opção de trabalho das primeiras levas dirigiu-se ao comércio. O objetivo da maioria dos jovens solteiros era fazer algum capital para poder voltar à aldeia natal. Embora pobres e, em geral, afeitos ao trabalho agrícola, o sistema da grande propriedade era um entrave para o estabelecimento no campo. Poucos foram os árabes que após o desembarque dirigiram-se para a agricultura, havendo histórias de famílias nas quais isso ocorreu após formarem um pequeno capital no comércio, facilitando a compra de fazendas. Além do mais, as condições de trabalho na lavoura tinham horrorizado a muitos. A miséria da população rural e o sistema de compra vinculado ao proprietário da terra fizeram com que muitos repelissem a possibilidade de se ocuparem na agricultura. Zuleika Alvim, citando P. Colbacchini, lembrou o desapontamento de muitos imigrantes italianos com as condições de vida na grande propriedade cafeeira: 'Distante da casa do fazendeiro se estende uma fileira de casinhas, normalmente construídas com barro e cobertas de palha, minúsculas para o número de pessoas que devem abrigar e com portas assinaladas por números progressivos, porque, de agora em diante, cada família, mais do que pelo número da casa onde mora [...]'. Os japoneses, ainda segundo esta mesma autora, chegando '[...] às fazendas, ficavam à mercê dos donos das vendas', onde tinham que comprar mantimentos com os quais era difícil recriar o universo alimentar a que estavam acostumados. Compravam carne-seca e bacalhau que, na falta de quem os ensinasse o preparo, eram comidos assados. Desse modo, não é de estranhar que Knowlton tenha apontado para casos de fuga de trabalhadores árabes do campo para a cidade.

O grosso da imigração dirigiu-se para São Paulo e Rio de Janeiro, localizando-se núcleos menores em Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Bahia. Até 1920, mais de 58 mil imigrantes tinham entrado no Brasil, sendo que o Estado de São Paulo recebeu 40% do total.

Segundo Truzzi, na cidade de São Paulo, em 1934, eles se concentravam nos Distritos da Sé e Santa Ifigênia, ou seja, entre as ruas 25 de Março, da Cantareira e Avenida do Estado; no Rio de Janeiro, um processo semelhante ocorreu com um número significativo de comerciantes instalados nas ruas da Alfândega, José Maurício e Buenos Aires.

A eleição da rua 25 de Março como pólo de atração é melhor conhecida. Em 1893 já há referências a casas de comércio, sendo que 90% dos mascates eram sírios e libaneses. Em 1901, já eram mais de 500 casas comerciais na região. Seis anos depois, um levantamento indicou que de 315 firmas de sírios e libaneses, 80% eram lojas de tecido a varejo e armarinhos. A eclosão da Primeira Guerra Mundial aumentou os lucros do comércio e da indústria com a interrupção da importação dos produtos europeus.

No Rio de Janeiro, o processo de instalação do comércio árabe na área atualmente conhecida como 'Saara' vem sendo pesquisado por Paula Ribeiro. Com a abertura da avenida Presidente Vargas na década de 40, muitos comerciantes foram obrigados a abandonar o quadrilátero próximo à praça da República, mudando-se para a Tijuca. Como na rua 25 de Março, em São Paulo, o comércio da rua da Alfândega é conhecido pelo caráter popular. Em 1962, foi fundada a Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega - SAARA, cuja sigla serviu como uma luva para o tipo de comerciante ali estabelecido. O trabalho de mascate pelo qual muitos começaram no comércio já era exercido anteriormente por imigrantes portugueses e italianos, tanto em São Paulo como no Rio. Mas a mascateação que se tornaria uma marca registrada da imigração árabe, foi completamente alterada pelos recém-chegados. Knowlton faz menção ao trabalho inicial com miudezas e bijuterias (terços e joias), expandida com o tempo e o acúmulo de capital para tecidos, armarinhos, lençóis, roupas prontas, artigos que pudessem ser vendidos em lugares isolados ou nos vilarejos, sendo transportados dentro de uma mala ou em baús. O ideal era que cada mascate levasse nas viagens o máximo de artigos que pudesse carregar, citando-se casos em que alguns chegaram a levar 80 quilos de mercadorias.

Para as populações interioranas, principalmente nas fazendas onde vigorava o sistema de compra vinculado ao proprietário, os mascates eram bem-vindos por fornecerem uma alternativa vantajosa em termos de qualidade e preço. Conforme acumulavam os ganhos, os mascates podiam contratar um ajudante ou comprar uma carroça. O passo seguinte era o estabelecimento de uma casa comercial urbana que podia permanecer no varejo ou evoluir para o atacado. O último grande passo era a indústria.

Truzzi destacou o sucesso do comércio da colônia sírio e libanesa como baseada no relacionamento dos agentes envolvidos nos negócios. Os elos eram montados dentro de uma cadeia que começava na chamada e recepção de novos imigrantes, passando por mecanismos de concessão de crédito e mercadorias, acompanhamento dos negócios, até o assentamento do mascate como varejista, atacadista ou industrial, dentro de uma linha de complementaridade de interesses. Entre os decênios de 1940 e 1950 notou que no Estado de São Paulo, embora o número de comerciantes varejistas tivesse caído, o atacado tinha quase dobrado e, os industriais, quintuplicado, mostrando a pujança do capital acumulado, passando do pequeno comércio para posições mais vantajosas na produção e circulação de mercadorias.

Esse mesmo autor, ao contrário de muitos outros que passam com amargor pelo termo pejorativo do 'turco da prestação' surgido com o mascate, destacou a revolução nas práticas comerciais implantadas pelos sírios e libaneses, considerando-os inclusive como criadores do 'comércio popular' no Brasil. Enquanto os mascates portugueses eram muito rígidos nos seus negócios, os italianos foram paulatinamente sendo expulsos pelas novidades trazidas pela concorrência. As inovações apresentadas pelos árabe na mascateação e no comércio varejista encontravam-se na redefinição das condições de lucro, alta rotatividade e alta quantidade de mercadorias vendidas, promoções e liquidações e o interesse pelo consumidor."

Fonte: MOTT, Maria Lúcia. Imigração Árabe: um certo oriente no Brasil. IN: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro/RJ: IBGE, 2007, pág. 179-187

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