Sempre que venho á imprensa, tenho como movel o utilitario e não diversões que expressem o verba et voces proetereque nihil.
E assim é que hoje tenho por assumpto o apparecimento, na cidade do Rio Grande, de uma epidemia que a todos prende n'um circulo de affligentes apprehensões.
Que moléstia é a que tem estado a dizimar a população dessa cidade?
Affirma o Sr. Dr. Phelippe Caldas que é ella a febre amarella; ora, o Sr. Dr. Caldas é uma intelligencia lucida, e, demais, amestrada pelo estudo e pela pratica; não se aventuraria, portanto, S.S. a uma affirmação que sirva de alavanca para afluir-lhe a reputação de que goza. Accresce que S.S. é acompanhado, no seu diagnóstico, por collegas que tambem se acham no lugubre theatro da epidemia.
Historiemos, porém, um pouco:
Até antes de 1859 (?), dizia-se que a febre amarella tinha o seu limite de propagação na linha equatorial, visto não ter havido, até então, exemplos do seu desenvolvimento no hemisphério austral (o nosso). Verdade é que, até antes dessa epocha, difficil não era notarem-se casos esporadicos d'essa molestia pelo littoral do Brazil, molestia a que Andouard assignalava, como causas productoras, - o calôr tropical e a introducção dos negros (!). Mais ainda: a moléstia que surgiu em Pernambuco, pelo anno de 1694, e qualificada, por Ferreira Rosa, de - febre pestilencial - exhibiu alguns doentes da febre amarella no meio de outras febres. O que ahi fica escripto pertence á historia médica do Brazil, onde, até 1830, a febre amarella não havia rebentado epidemicamente.
Pois bem, si essa peste venceu a barreira que a detinha por outras paragens, e se, de 1830 para cá, veiu a encravar-se no Brazil, sem, porém, localisar-se em ponto algum de terras rio-grandenses, de admirar não é que depois d'esse decurso de decennios viessem ellas a ter dias de lucto, por causa dessa mesma peste. Assim fallo, considerando a febre amarella como peste viajante, e, portanto, fallo em conformidade de estylos recebidos.
Transgredindo, porém, esses estylos, não será permittido que eu investigue as cousas por modo differente, dizendo que, febre amarella ou não febre amarella, a causa da peste ora reinante na cidade do Rio Grande, deve ser toda local e não exotica ou de importação!
E, realmente, não se diz que essa peste, logo ao accusar-se, irrompeu em uma parte pantanosa da cidade, parte que fôra aterrada com cisco? Demais, não é natural que matérias organicas (o cisco as encerra), accumuladas em camadas espessas, originem, por sua decomposição, emanações pestíferas, que, aliáz, prolongam os males que espalham, por isto que essa decomposição não é instantanea e sim demorada?
Para representar bem ao vivo qual a nocividade das matérias que, decompondo-se, dão effluvios ou emanações de causarem a morte, basta que eu reproduza as seguintes linhas, que tracei (em 1871), na minha Gazeta Rio-Grandense (pag. 122):
<<O lago Carnarina, na Sicilia, de tal sôrte incommodava os habitantes ribeirinhos, que uma consulta foi feita a Apollo. A resposta dada pelo oraculo foi: - não se bula nas aguas do lago (ne moveas Camarinam). Entretanto, não se importando com o conselho do oraculo, puzéram-se os habitantes a seccar o lago, resultando dahi uma epidemia, que dizimou o paiz. - Ora, claro está que a peste proveio das matérias que estavam no fundo do lago, porque, postas em immediato contacto com o ar e recebendo o calor do sol, - prompta foi a decomposição dessas matérias, que, assim, originaram a morte de tanta gente.>>
Porque, pois, não se tem concentrado a attenção acêrca das emanações da localidade que foi aterrada com cisco?... Ahi e não no micróscopio do bactereologista estava, e ainda está, ao que entendo, o campo das investigações a fazerem-se.
Mas, em these geral, por se acharem microbios em organismos morbidos, são elles as causas de todas as molestias em que elles se mostram? ou sao elles seres que proliferam em consequencia de encontrarem casuaes adaptações em organismos mórbidos, alterados e apropriados, portanto, á sua vitalidade?
A adaptação é muito significativa para não se dizer - Amen - ao exclusivismo em que o bacterologista fundamenta a etiologia de um numero já assaz avultado de molestias.
Acêrca da adaptação, enumerei casos de toda a naturalidade, em artigos que, sobre o trigo, foram publicados (ao começar do anno de 1899), no Correio Mercantil, desta cidade, e tanto me exima de procurar justificar a grande funcção que a adaptação desempenha no orbe biologico.
Portanto, embóra comprehenda que microbios (ditos pathogenicos), por proliferarem no organismo e á causa deste, neste funccionarem como causa concorrente ou secundaria á causa primeira de um estado e mesmo fazendo-o ultimar pela morte, - longe estou de attribuir a microbios a origem da pesta que anda pela cidade do Rio Grande; e concentro, pois, o meu pensamento em suppôr que ás emanações dos referidos aterros é devida a epidemia que tem estado a desolar essa cidade.
(...)
Castro Ramalho."
Fonte: A OPINIÃO PÚBLICA (RS), 04 de Junho de 1900, pág. 01, col. 01-02
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