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domingo, 29 de julho de 2018

Os depoimentos de Thomaz Staveley - Parte 01


Em meados do século XIX, a Grã-Bretanha estava empenhada em suprimir o tráfico de escravos da África para a América, tanto que, em 1845, foi promulgado a Bill Aberdeen. Transcrevemos aqui um importante conjunto de depoimentos realizados em 1849 sobre a questão, apresentados junto à Câmara de Comuns na Grã-Bretanha, realizados por um membro da dita câmara, o cavalheiro Sir Thomaz Staveley (Lord Howden) - membro da comissão encarregada de tratar a questão. Muitas informações sobre a questão do tráfico e escravatura no Brasil.

"DEPOIMENTO DO CAVALHEIRO THOMAZ STAVELEY

P - Estais preparado para expor á commissão os fundamentos do presente systema adoptado para a suppressão do trafico da escravatura sobre a costa d'Africa?

R - Procurarei faze-lo. Durante a guerra que terminou em 1815, a Grã-Bretanha, como vossas senhorias não ignorão, por meio de suas victorias navaes pôde exercer supremos direitos de guerra sobre todos os mares; occupou, por conquista, uma grande parte das colonias das nações que fazião o commercio da escravatura, e chegou assim a ter grande predominio sobre o trafico de escravos dos outros paizes; porém quando se concluiu a paz em 1815, o direito de busca da Grã-Bretanha no alto mar veio a cessar, e em virtude das condições dessa mesma paz restituiu ella muitas colonias aos seus antigos donos. Existia porém da parte da nação britanica um ardente desejo de que os acontecimentos que havião restaurado a paz e prosperidade européa, não fossem a causa de renovar-se a guerra e augmentar a miseria em Africa; de modo que o governo britannico se viu compellido, não só pelas manifestações da opinião publica, como pelas respetivas petições das duas camaras do parlamento dirigidas á corôa, a procurar prevenir, por meio de negociações com as potencias estrangeiras, os males que provavelmente traria comsigo a cessação daquellas medidas que as circumstancias da guerra havião autorisado para a suppressão do trafico. No congresso de Vienna, em 1815, tinha a Inglaterra, conjunctamente com a França, Austria, Prussia, Russia, Portugal, Hespanha e Suecia, assignado uma declaração comdemnatoria do commercio da escravatura, e satisfazendo aos incuriaveis desejos e supplicas do parlamento e da nação sobre este objecto, tem estado o governo britannico, ha mais de 33 annos, em constante negociação com as potencias estrangeiras, afim de induzi-las a dar o seu consentimento e a cooperar para a final soppressão do trafico. Esses prolongados esforços tiverão mui feliz exito; pois que não sendo o trafico, no principio das negociações, reprovado por outra alguma potencia estrangeira, excepto a Dinamarca, a França e os Estados-Unidos, sendo antes legalisado por muitas, acha-se agora denunciado como um crime abominavel por quasi todas as nações christãs, e quasi todos os estados ou o teem prohibido, debaixo de severas penas, ou se teem compromettido a faze-lo cessar, em virtude de tratados feitos com a Grã-Bretanha; e se durante muitos annos, depois da paz geral continuou a fazer-se o trafico em grande escala, debaixo das bandeiras de França, Hespanha, Hollanda e Portugal, já os Francezes e Hollandezes deixárão inteiramente de fazer o trafico de escravos, e os Portuguezes e Hespanhoes o teem quasi descontinuado. Além disso, a França deu um passo mais adiante, e emancipou os seus escravos, e Portugal nomeou uma commissão encarregada de preparar uma lei para a abolição da escravidão em todas as suas colonias. Actualmente póde dizer-se que o Brasil é quasi o unico paiz onde ainda existe o commercio da escravatura.

P - Quando dizeis que o Brasil é quasi o unico paiz onde existe o trafico tendes em lembrança a ilha de Cuba?

R - Sim: segundo as nossas participações officiaes, o trafico limita-se agora quasi inteiramente ao Brasil. O que ainda se faz em Cuba é mui diminuto, e parece que está a expirar. Tenho aqui uma lista dos tratados existentes entre a Inglaterra e as outras potencias estrangeiras sobre a suppressão do trafico. Tres são as classes destes tratados.

P - Quereis ter a bondade de descrevê-las?

R - A primeira classe dá a cada uma das partes contratantes o direito reciproco de busca nos navios mercantes da outra, dentro de certos limites geographicos, e o direito de deter as embarcações mercantes que forem encontradas com escravos a bordo, ou esquipados para o trafico; e nos mesmos tratados se declarão as circumstancias que constituem prima facie o esquipamento e apresto para o trafico da escravatura. Esses tratados estabelecem tribunaes mixtos, compostos de commissarios de cada nação, e situados nos territorios de cada uma das partes contratantes, nos pontos mais convenientes para o julgamento dos navios capturados. Taes são os tratados que a Inglaterra fez com a Hollanda, a Suecia, o Brasil, a Hespanha, Portugal, a Confederação Argentina, e com as republicas do Uruguay, de Bolivia, Chile e Equador.

P - Como reconciliais o que acabais de dizer com o principio que se allega de não podermos deter um navio brasileiro sendo o tratado com o Brasil da primeira classe?

R - Podemos deter um navio brazileiro, mas não temos autoridade sobre as pessoas.

P - E no caso de que haja resistencia?

R - Capturamos o navio e a carga, e dispomos de ambos; mas não podemos entrometter-nos com a tripolação depois da captura.

P - Podeis mata-los no combate, porém uma vez que arriem bandeira nada mais tendes que fazer com elles?

R - Não ha lei ingleza existente que vos autorise a puni-los.

P - Qual é a segunda classe de tratados?

R - Os tratados da segunda classe são aquelles em virtude dos quaes se concede, como nos da primeira classe, o direito reciproco de busca e detenção dentro de especificados limites geographicos, com a differença de que a embarcação apresada, em vez de ser julgada ante um tribunal mixto, é sujeita aos tribunaes do paiz cuja bandeira foi capturada. Taes são os primeiros tratados que a Inglaterra concluira  com a França (ora suspensos pela convenção de 1845), e os tratados subsistentes entre ella e a Dinamarca, a Sardenha, as Cidades Anseaticas, a Toscana, as Duas-Sicilias, Haity, Venezuela, Mexico, Austria, Russia e Prussia.

P - Como procedeis nos casos de navios encontrados sem bandeira alguma?

R - São julgados pelo tribunal do vice almirantado como não tendo caracter algum nacional.

P - Que fazeis com as pessoas encontradas a bordo?

R - Não temos autoridade sobre ellas.

P - Tentou-se alguma vez obter das potencias estrangeiras que prohibem o trafico a permissão de punir as pessoas encontradas a bordo dos navios negreiros que navegão sem bandeiras?

R - Penso que não.

P - Não consultou Lord Palmerston ao advogado da rainha para saber se no caso de resistencia da parte de uma tripolação estrangeira seria facultativo á Inglaterra o puni-las, que em virtude de lei existente, ou por outra qualquer lei que o parlamento fizesse?

R - A questão proposta por Lord Palmerston ao advogado da rainha foi, senão me engano, se acaso certos individuos que havião sido encontrados a bordo de uma embarcação negreira, e trazidos á Inglaterra, poderião ser enviados ao Brasil para serem ahi processados por infracção das leis brasileiras.

P - Podeis dizer qual foi a resposta do advogado da rainha?

R - Creio que respondeu que as leis existentes nos não davão essa faculdade.

P - Não se lhe perguntou tambem se competiria ao parlamento britannico fazer uma lei para esse effeito?

R - Não estou certo.

P - Haveis mencionado duas classes de tratados: quereis ter a bondade de explicar a terceira?

R - A terceira classe de tratados comprehende dous, a saber: o tratado que agora temos com a França, e o que temos com os Estados-Unidos, os quaes não concedem direito reciproco de busca, mas cada uma das partes obriga-se a manter uma certa força sobre a costa d'Africa para vigiar a sua propria bandeira mercante, e impedir que embarcação alguma se empregue em fazer o trafico debaixo dessa bandeira. A primeira e a segunda classe de tratados não impõem a nenhuma das partes contratantes e especifica a obrigação de manter uma força qualquer sobre a costa d'Africa.

P - Que autoridade tem os Estados-Unidos relativamente aos navios negreiros de outras nações?

R - Nenhuma, que eu saiba.

P - Não capturão so Norte-Americanos alguns navios?

R - Sómente os seus proprios.

P - Como tratão elles as embarcações que navegão sem bandeira?

R - Não o sei dizer.

P - Promulgára elles alguma lei qualificando o trafico da escravatura como crime de pirataria?

R - Sim; mas essas lei é só applicavel aos seus proprios cidadãos.

P - Não suggeriu o governo britannico ao dos Estados-Unidos a idéa de adoptar uma lei prohibindo aos americanos o fazerem o commercio de escravatura sobre a costa d'Africa?

R - Creio que em 1847 fez-se uma representação ao governo dos Estados-Unidos chamando a sua attenção para o extenso uso que se fazia de sua bandeira e dos seus navios no trafico da escravatura, e suggerindo a conveniencia de uma lei penal contra a venda de embarcações americanas para similhante fim. Parece ao governo de S.M.B. que uma tal lei, restrictamente observada, contribuiria muito para acabar com esse abuso.

P - Sabeis que essa representação teve algum resultado?

R - Creio que nenhum.

P - Residio V.S. no Brasil como ministro britannico?

R - Sim.

P - Que espaço de tempo?

R - Quasi um anno; deixei Pernambuco em 15 de maio ultimo.

P - Durante a vossa estada no Brasil tivestes occasião de observar o estado de cousas, quanto á cultura, importação de mercadorias, etc.?

R - Pouco posso dizer sobre a cultura, porque o meu mister era principalmente com a metropole. A cultura está espalhada por uma tão vasta extenção do paiz, que não tive muitas occasiões de examinar o estado della, ainda que tenho algumas idéas geraes pelo que ouvi dizer.

P - Mui pequena porção de solo cultivavel tem sido por ora aproveitado?

R - Parece-me que mui diminuta parte: a extenção do imperio do Brasil é immenso.

P - Sabeis se ha algum terreno cultivado sem ser por escravos?

R - Sim; ha terra cultivada por emigrados allemães em Petrópolis, sítio pertencente ao Imperador.

P - Sabeis se ha longo tempo que é cultivada por homens livres?

R - Ha bem pouco tempo; e apenas póde dizer-se que ella está em estado de cultura, porque as difficuldades que apresenta a natureza do terreno são taes que elle se está antes preparando para o cultivo, do que effectivamente cultivado.

P - Nesse caso póde considerar-se como uma experiencia?

R - É exactamente uma experiencia, e com grande probabilidade de máo exito.

P - Sabeis se os colonos empregão o trabalho de escravos?

R - Consta-me que não.

P - Então por ora as suas tentativas teem tido antes por objecto o prover á subsistencia das suas familias, do que o commercio?

R - Sem duvida; e posso mesmo dizer que nem á sua subsistencia teem elles conseguido prover, e que uma grande parte se mantém com os soccorros que lhes são ministrados pelo governo: ha entre elles grande miseria.

P - A grande cultura da maior parte do Brasil consiste em assucar e café?

R - Nas provincias septentrionaes cultiva-se assucar, tabaco, algodão, arroz e cacáo; o producto da mais meridional, que é o Rio Grande, consiste em gado, couros e sebo; é essa a mais bella provincia do imperio, quanto ao clima, e podia mui bem ser colonisada por Europeos: nella deu-se antigamente trigo, mas sobrevindo um anno em que as seáras forão destruidas por alguma causa atmospherica, os habitantes entregárão-se exclusivamente á criação do gado vaccum, que sendo mais productiva que a cultura do trigo, ficou sendo depois a sua unica occupação. Mais para o norte acha-se o assucar em S. Paulo; e igualmente o café; no Rio de Janeiro, cultiva-se quasi exclusivamente o café, cuja plantação nessa provincia não data de mais de 50 annos. Na Bahia abunda o tabaco e o assucar; em Pernambuco o assucar e o algodão; no Maranhão principia a escassear o assucar, e cresce o arroz e o cacáo até ao Pará, onde ha toda a sorte de producção, sendo esta provincia e a do Rio Grande do Sul as mais bellas do Brasil. Além do arroz e do cacáo, encontrão-se no Pará muitas drogas medicinaes, excellentes madeiras de tinturaria, grande abundancia de gomma elastica e de salsaparrilha, e uma infinidade de outras producções que não existem nas outras provincias do centro e sul do Brasil.

P - Não se exporta algodão do Maranhão?

R - Sim; porém Pernambuco é o grande emporio desse genero.

P - Que especie de trabalho é o que se emprega principalmente no Rio Grande do Sul?

R - Até cinco ou seis annos passados era o trabalho quasi todo feito por Europeus. Ha grande analogia entre os habitantes daquella provincia e os das margens do Prata; o clima é homogeneo, os habitos do povo os mesmo.

P - Quereis dizer pessoas de origem européa, porém nascidas no paiz?

R - Sim. Não me consta que haja outros emmigrados empregados na cultura das terras em outra alguma parte do Brasil, excepto os da colonia de Petropolis que mencionei. Accrescentarei que existe uma preoccupação entre os fazendeiros ou lavradores brasileiros contra os colonos europeus por um lado, e do outro os aventureiros europeus que poderião emigrar não teem grande confiança no governo do Brasil relativamente á execução dos seus ajustes. Nestes ultimos cinco ou seis annos muitos escravos teem sido importados no Rio Grande do Sul, e creio que continuão a ser introduzidos diariamente naquella provincia, onde antes não havia um só. Espero que o porto do Rio Grande esteja agora vigiado em consequencia de uma recommendação que fiz ao commodore Herbert, afim de evitar a especie de mysterio que existe a respeito da entrada do porto, mysterio que me parece se faz de proposito para facilitar o trafico. Dizem que ha sómente dez pés d'água sobre a barra, e sei que embarcações que demandão doze e treze pés podem entrar e sahir. Ha tambem grande irregularidade, por descuido ou intencionalmente, no içar da bandeira que serva de signal quando a barra é praticavel. A pilotagem está ali sujeita a muitas dificuldades, e commetera-se grandes exames sobre as embarcações estrangeiras. Ha um logar chamado Pelotas dentro da Lagôa dos Patos, aonde são geralmente levados os escravos, para serem dali distribuidos pelo paiz, á medida que são precisos. São pela maior parte da mesma raça dos que vão para a Bahia, e procedente do equador. Provavelmente a sua superior capacidade faz com que sejão preferidos pelos criadores de gado.

P - Não são sempre os melhores escravos conduzidos ao Rio de Janeiro, e os mais rispidos e bulhentos enviados para a Bahia?

R - Sim; mas isso é uma questão de nacionalidade, e não de individualidade. Os negros que inspirão mais temor, e mais difficeis de governar, são os tirados de certa parte d'Africa, os quaes teem um distincto caracter nacional. Todos os que procedem dos dominios portuguezes d'Africa são mais pacificos e doceis de genio do que os do norte do equador. No Rio de janeiro receia-se admittir estes ultimos por serem mais refractarios e mais intelligentes que os de Cabinda, Loanda, Benguella e Mozambique, e alguns até possuem certa tintura de educação e habitos de ordem, o que junto ás suas grandes forças physicas, os torna perigosos em tempos de revolução, quer esta provenha de causas politicas ou sociaes.

P - Sabe V.S. qual é a origem do nome <<escravos minas>>?

R - Esse nome vem do um logar chamado Elmina, ao nascente, e não muito longe do cabo Costa. Ha uma extraordinaria differença entre os escravos minas e os de outras nações africanas; creio que em tamanho e configuração anatemica são os mais bellos homens que tenho visto. Os escravos importados na Bahia são quasi todos tirados daquella parte da costa. Muitos dentre elles são Mahometanos, e sabem ler e escrever. Não só são capazes de raciocinio, e de formar juizos, comparando duas idéas para tirar dellas uma exacta consequencia (o que é raro nos outros escravos do Brasil), mas tambem são dotados de previsão e de espirito de ordem e associação. Formão clubs e fraternidades entre si, e economisão e ajuntão dinheiro para se forrarem e comprarem a liberdade de outros escravos da sua nação.

P - Segundo a vossa declaração, os escravos Minas são importados exclusivamente na Bahia e no Rio Grande do Sul?

R - Não digo exclusiva, mas principalmente, estou certo que existem agora 15 mil escravos no Rio Grande, e ha 5 annos não poderião existir mais de 500.

P - Podeis assignar a causa desta mudança de circumstancias? Será ella devida ao augmento da agricultura, ou á maior producção de gado, que tornou necessaria maior quantidade de braços?

R - Houve ha alguns annos uma rebellião no Rio Grande (e ainda existe grande descontentamento entre os habitantes); por conseguinte muitos individuos emigrárão para o estado visinho do Uruguay, e multiplicou-se extraordinariamente o gado bravio. Tem tambem augmentado o commercio da provincia em consequencia da guerra no Rio da Prata; e assim achárão os traficantes de escravos um favoravel ensejo para as suas criminosas especulações, supprindo a falta de braços com captivos africanos.

P - Então o fornecimento do trabalho escravo tem feito desapparecer da provincia o trabalho livre?

R - Essa inferencia é demasiado forte; talvez que o vá diminuindo, ou que venha a faze-lo desapparecer pelo tempo adiante, mas não se dá esse caso presentemente.

P - São os habitantes do Brasil de puro sangue portuguez, ou teem elles mistura de sangue indio?

R - Uma grande parte procede da raça indigena, e ainda mais da raça africana. Conheço membros da camara dos deputados que teem mais que uma leve tintura desse sangue. O homem mais eloquente e um dos melhores letrados do Brasil é um verdadeiro mulato, e sua mulher é quasi preta; e a ambos vi eu admittidos na melhor sociedade.

P - Não ha pois o mesmo prejuizo contra a côr que existe na America do Norte?

R - Algum ha, mas não tanto.

P - Sabeis os nomes dos logares por onde os escravos são geralmente introduzidos na provincia de S. Paulo?

R - Não creio que se introduzão directamente muitos naquella provincia. Santos é o principal porto, e sahem deste algumas embarcações esquipadas para o trafico, porém quasi todos os escravos que entrão na provincia são trazidos do Rio de Janeiro, ou do norte ao longo da costa.

P - Ha alguma razão para que elles não sejão ali introduzidos directamente?

R - Ha muitas mais facilidades para desembarcar escravos nas visinhanças do Rio de Janeiro, devidas á configuração da costa, e pela connivencia das autoridades locaes. A maior parte dos capitalistas estão ahi estabelecidos, e é immenso o numeto de Africanos que se introduzem sem serem destinados para o immediato consumo da provincia, mas que são dahi enviados para o norte, sul e interior do paiz, segundo a procura que ha delles.

P - Se forem encontrados no mar quando são expedidos ao longo da costa, poderão elles ser capturados?

R - Estarião sujeitos a ser tomados pelas nossas embarcações de guerra, bem que seja este um direito fortemente contestado pelo governo do Brasil.

P - Teem havido insurreições de escravos na Bahia e outros lugares, mas nunca no Rio de Janeiro: attribuis vós esta circumstancia á differença da raça dos negros ahi importados?

R - Sim, attribuo-o inteiramente a raça. Em primeiro logar os introduzidos na Bahia pela superioridade das suas faculdades intellectuaes soffrem com mais repugnancia a escravidão; além disso, sendo todos da mesma nação, entendem-se perfeitamente entre si; estão ligados pelos laços communs de sangue e tradição; não teem differenças de familias e antipathias nacionaes, como acontece no Rio de Janeiro com as raças misturadas, muitas das quaes não fallão a mesma lingoa, nem são da mesma religião. Na Bahia fallão todos a mesma lingoa, e esse meio de occulta communicação dá-lhes grande facilidade para conspirar e obrar de accordo.

P - Sabeis qual é a proporção das creanças relativamente ao numero total dos Africanos importados?

R - Não ha um registro exacto, mas posso affirmar que é mui diminuto. A respeito de estatistica no Brazil é impossivel dar uma resposta. Em primeiro logar não se faz ali recenseamento de população; e em segundo, alguns mappas estatisticos que existem são tão mal feitos, e sobre dados tão incertos, que é impossivel formar uma idéa exacta. Segundo os calculos mais exagerados, o numero total dos habitantes seria de sete milhões, mas creio que não excede a cinco milhões.

P - Não ha augmento da raça negra pelo processo da geração?

R - Muito pouco na verdade, e agora menos que nunca por esta razão: morre um grande numero de escravos nos dous ou tres primeiros annos da sua chegada; accresce que um dos principaes objectos dos traficantes negreiros é evitar os nossos cruzadores, e sabem por experiencia que os homens são artigos menos frageis que as mulheres, e supportão melhor as fadigas da passagem media, por cujo motivo não trazem agora a proporção dos sexos que antes conduzião. Emquanto havia essa proporção o dono dos escravos derivava outro producto além do que lhe rendia a terra, e tinha em vista tanto o producto animal como o da agricultura, attendendo por conseguinte ao bem estar dos escravos; presentemente que as mulheres são tão poucas, o processo generativo é desprezado, e só se cuida em tirar dos negros todo o trabalho possivel.

P - Se o governo do Brasil quizesse seriamente executar as obrigações contrahidas com o governo britannico teria elle os meios de se fazer obedecer dos seus subditos?

R - O estado do Brasil, quanto a essa questão é bem extraordinario: a direcção dos negocios está indirectamente, ou quasi de todo, nas mãos de homens que são de facto estrangeiros. Ha perto de quarenta mil Portugueses, homens que ou são naturalisados brasileiros, ou que estão debaixo da protecção da bandeira brasileira; grande numero delles se naturalisárão no tempo da declaração da independencia, quando se lhes fez simplesmente a pergunta se querião ou não ser brasileiros: e elles responderão que sim. As leis de naturalisação do paiz são muito elasticas: uma residencia de tres annos, e o casamento com uma Brasileira, é sufficiente, mediante uma petição ao corpo legislativo, para qualquer estrangeiro naturalisar-se: os Portuguezes teem ali objectos de interesse e meios de enriquecer-se que os Brasileiros não possuem, e são os unicos individuos que fazem alguma coisa com energia. No Rio de Janeiro, a maior parte delles principião por ser caixeiros; outros começão a andar com uma carroça, ajuntão algum dinheiro, fazem-se depois feitores, ou tornão-se cambistas, commerciantes, emprestadores de dinheiro a premio, e por fim veem a ser grandes capitalistas e proprietarios de escravos. É esta a gente que empresta dinheiro quando ha falta delle: os ministros quando necessitão dinheiro recorrem immediatemente ao capitalista, que dez vezes contra uma não deixa de ser um traficante de escravos. Demais, como os escravos não são comprados a dinheiro á vista, e sim a credito, os negociantes negreiros teem hypothecas sobre metade, pelo menos, de todos os bens de raiz no Brazil, de maneira que póde dizer-se que elles teem lançado uma rede sobre todo o paiz, inclusive governantes e governados. Comtudo, apezar do seu póder e influencia, e talves por isso mesmo, os Portuguezes são objecto de profunda antipathia; são victimas de quasi todas as insurreições, e sempre que alguma apparece, o primeiro grito é de <<mata Portuguez>>. São elles os que impedem o governo executivo de fazer um ajuste com o nosso governo.

P - Quaes são as principaes residencias desses Portuguezes capitalistas?

R - Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco.

P - Não morão no interior do paiz?

R - Não; vivem nas principaes cidades maritimas.

P - Attribuis pois as difficuldades que encontra o governo do Brasil em executar de boa fé os tratados feitos para a suppressão do trafico antes aos capitalistas portuguezes do que ao Brasileiros?

R - Certamente que sim.

P - Está por ventura o governo sob a influencia e predominio dessa gente?

R - Sim, porque o governo é pobre, elles são ricos.

P - Considerão elles o Brasil como o permanente domicilio, ou só residem por certo tempo com a intenção de regressar a Portugal?

R - Muitos regressão porém a maior parte, por contrahirem matrimonio e outras allianças, considerão o Brasil como sua patria. O mais proeminente de todos elles... tem tido por uma ou duas vezes a idéa de abandonar o trafico, julgando ter já adquirido uma sufficiente fortuna.

P - A antipathia que dizeis existir contra elles é da parte de todas as classes?

R - É entre Brasileiros e Portuguezes.

P - Por todas as classes de Brasileiros?

R - Sim; é um sentimento geral.

P - Ha companhias de seguro organisadas para auxilio o trafico?

R - Ha.

P - No Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco?

R - Creio que sim; no Rio de Janeiro, de certo.

P - Se o governo quizesse realmente impedir o trafico sobre essa extenção de costa, não teria elle uma força organisada sufficiente para esse fim?

R - É impossivel dizer o que uma vontade energica não poderia conseguir, mas a cousa seria na verdade difficil. Primeiro que tudo seria preciso pagar aos empregados publicos um sufficiente ordenado, porque sendo mesquinhamente pagos deixão se subornar pelos traficantes de escravos. Acontece exactamente o mesmo que com o contrabando de mercadorias que se introduzem na Hespanha; em primeiro lugar dá enormes lucros, e em segundo os mesmos que teem por obrigação estorval-o achão maior interesse em consentir que elle se faça.

P - Não vos parece que se o governo fizesse cumprir pelos seus subditos as leis existentes contra o trafico, bastaria isso para o diminuir consideravelmente?

R - Sem duvida alguma.

P - Não seria facil, se o governo quizesse proceder de boa fé, e mostrar praticamente que os seus subditos estão sujeitos ás penas que a lei do paiz estabelece contra o trafico?

R - Seria de certo um pesado golpe e um grande escarmento; mas suppunho que sempre haverá gente que se embarque em tal especulação; risco nenhum afastou jámais os homens do engodo de enormes lucros. Esta manhã fiz eu um calculo das despezas de um navio negreiro e dos lucros provaveis. Uma embarcação negreira de bom tamanho, comprehendidas todas as despezas do seu completo equipamento e o preço dos escravos, custa pouco mais ou menos cinco mil libras esterlinas, e o carregamento de carne humana com que ella volta dá pelo menos vinte cinco mil libras, isto é, 500 por cento de lucro.

P - Ha alguem no Brasil que acredite que o governo deseja seriamente acabar com o trafico?

R - Ninguem que tenha senso commum.

P - Poderia existir e sustentar-se algum governo que tentasse extinguir o trafico?

R - Duvido muito disso, a menos que alguma mudança interna ou externa occasionasse uma grande alteração na opinião geral do paiz.

P - No caso de que os principaes portos do Rio de Janeiro e Bahia fossem estrictamente bloqueados pela Inglaterra, por causa da violação dos tratados feitos comnosco, não daria isso grande força ao governo brasileiro no empenho de reprimir o trafico?

R - É cousa bem facil fallar de bloqueio (pois supponho que o bloqueio a que alludis não é commercial, mas sim para a captura dos navios negreiros), porém as difficuldades que o acompanhão são muito serias. Em primeiro lugar, o tempo dos vossos cruzadores seria quasi todo empregado em registrar navios que não fossem negreiros, e que navegando licitamente passassem á vista delles; e assim estariamos constante e gratuitamente vexado o commercio legitimo. Em segundo lugar, seria quasi impossivel achar pilotos que indicassem as passagens por onde as embarcações negreiras se introduzem para desembarcar os escravos. A configuração da costa é verdadeiramente extraordinaria: ao longo de um grande parte della, e quasi paralello, corre um recife de pedras; o porto de Pernambuco é formado por este recife, que em frente da cidade sahe á flôr d'agoa, e que em uma grande extenção offerece estreitas aberturas e ingressos. Todas estas passagens, esteiros e pequenos portos que ha sobre a costa são conhecidos dos capitães negreiros, que nellas entrão com os seus navios sem que possão ser perseguidos pelos nossos cruzadores. E' isto é prescindindo do direito internacional, e da convencional inviolabilidade de certa extenção de mar que fórma o limite territorial de toda nação maritima. Em terceiro logar, as embarcações destinadas para o trafico não são ordinariamente para mais de dous ou tres viagens; são feitas de taboas grosseiras, pregadas umas ás outras, e algumas vezes sem curvas, de maneira que quasi todas, quando chegão da África ao Brasil, estão em estado de ir a pique. Em quarto logar, estes navios no fim da viagem teem já consumido todos os seus mantimentos, visto que é fácil calcular approximadamente os dias de navegação, em consequencia dos ventos geraes; e assim teriamos que suppri-los todos com viveres se quizessemos faze-los seguir para alguma outra parte. Se possuissemos um ponto geographico nas visinhanças da costa, seria outro caso."

Fonte: O RIO-GRANDENSE (RS), edições de 26 e 27 de abril de 1849





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