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domingo, 20 de maio de 2018

Flora Mercedes Maciel Moreira


Por Maciel Moreira 

"Eu vejo-a hoje como eu a contemplava outrora, sinto-a ainda como a sentia então! Fisionomia altiva e pura, olhar leal, cabeça prateada, voz suave e modos delicados - a bondade que dela emanava tinha a aveludada maciez de um arminho. Nunca apreciei aquêles lábios no desajeitado arquear antipático de um sorriso mau: jamais percebi na sua fronte as rugas que atestam a permanência de pensamentos egoístas. Ela não pregava só com a palavra: mas muito mais com o exemplo - perdoar... perdoava sempre, recolhia-se a uma modéstia muitas vêzes exagerada para não despertar a inveja das vaidades tôlas e dos orgulhos descabidos.

A mais genial musicista e poetisa de quantas há o Brasil produzido, na frase do nosso inimitável pensador Gama Rosa: não deixou uma só música impressa, nem um só verso que lhe perpetuasse o nome. A mais ilustrada e completa dama de seu tempo, no afirmar de Afonso Celso, viveu calmamente nesta cidade, de que foi o ídolo querido. 

A sua bondade não era essa bondade gelatinosa, quase um defeito das naturezas fracas que não tendo fôrças para querer, amoldam-se a tudo: ela tinha a bondade inteligente das naturezas verdadeiramente superiores, compreendia e desculpava: via e fechava os olhos, tirando fôrças do seu coração magnífico, animado por um espírito culto, profundo e são... E, sentada na sua cadeira de balanço, naquela modestíssima cadeira que já fôra de sua mãe, e pela qual suspirava até em Paris, minha mãe prendia, admirava, encantava - tendo sempre à flor dos lábios a palavra simples que comove a criança, a ironia delicada que delicia o moço, a suave nostalgia das coisas passadas que fazem reviver os velhos.

Qualquer que fôsse a classe da pessoa que a ela se dirigia, pensava encontrar uma semelhante, uma amiga de longos anos - alguém com quem sempre estivera em franco contato. Mistério estranho; sugestão incompreensível de certas naturezas que atraem, dominam, subjugam na delicadeza privilegiada de uma página de D. João da Camara...

Há traços que debuxam perfeitamente o seu perfil moral, mas onde ela avulta é quando a dor da perda de uma filha moça, morta quase repentinamente, em vez de levá-las às exteriorizações mal compreendidas dos xales pretos e das janelas cerradas, transformou-se na dedicação maternal pelas órfãs, e ergueu a enfermaria do Asilo da Conceição. Em tôrno de seu nome ouve-se ainda hoje um eco de bênçãos: a sua imagem, mais do que nas associações, destaca-se numa infinidade de casebres; até alguém viajando pela campanha do Herval, entrando numa venda perdida na solidão, reconheceu à cabeceira de um leito o velho número da 'Opinião' que publicava o seu último retrato. 

Talvez fôra melhor não haver escrito estas linhas, se Alves Mendes exclamou: santa memória! Não te profanarei, não te macularei com as minhas expressões. Quando o mérito ressalta extra-humano à fôrça de impossível e ressalta inverossímil à fôrça de real, não há palavra tão fecunda como o silêncio. Mas, é que eu a vejo hoje como a contemplava outrora: é que eu sinto-a como a sentia então: na impressionante e harmônica beleza do medalhão de mármore que marca a sua derradeira morada. E lá ajoelhado, eu recito os versos do divino João de Deus, a uma enjeitadinha:
'És mais feliz do que eu
que tive mãe... e morreu!"

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