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quinta-feira, 5 de abril de 2018

A comida e a América


"Não há nada mais brasileiro que uma caipirinha, mais francês que o filé com fritas, mais italiano que o macarrão al sugo, certo? Nem tanto. No ano em que se completam cinco séculos da chegada de Cristóvão Colombo à América, e tanto se polemiza sobre as consequências morais e políticas desse acontecimento, também se poderia lembrar que o panorama da gastronomia do mundo mudou radicalmente com a união promovida entre os continentes. Muito do que hoje parecem pratos ou ingredientes ligados desde sempre à história de alguns povos não é mais que um conjunto de aquisições relativamente recentes, produto da nova geografia criada com as grandes navegações. Se do intercâmbio daí nascido não tivessem participado as guloseimas, então típica de cada um dos lados, hoje os italianos teriam que passar com anêmicas pizzas sem uma gota de molho de tomate; os mineiros nem sequer sonhariam em se lambuzar com suas bistequinhas de porco; franceses, belgas e suíços teriam que se conformar com outros acompanhamentos para seus pratos no lugar da batata; os argentinos seriam até hoje vegetarianos, destituídos de suas carnes e churrascos; os franceses jamais saberiam o sabor de um vigoroso cassoulet de feijão branco; e um enorme vazio teria ocupado o lugar do vistoso cacho de bananas no cesto de frutas que ornava a cabeça de Carmen Miranda, simbolizando a natureza tropical do Brasil.

Isto porque esses ingredientes, ao contrário de serem nativos dos países que os adotaram com tanto apetite, na verdade vieram de além-mar para se constituir em mais uma marca da era aberta pelo genovês Colombo. Depois do século XVI ficou mais interessante comer, a partir da introdução dos novos produtos - mesmo que alguns deles tenham demorado às vezes centenas de anos para serem assimilados. A batata, por exemplo, migrou da América para a Europa no século XVI, depois que foi encontrada na Colômbia pelo conquistador Juan de Castellanos (ao vê-la entre outros cereais numa vila deserta, ele inicialmente a confundiu com as valiosas trufas). Sua popularização no Velho Continente, no entanto, foi muito lenta. Enquanto para alguns nobres o tubérculo poderia ter benfazejas propriedades afrodisíacas, para a massa de camponeses ele parecia indigesto e venenoso: o temor chegava a ponto de famintas legiões de prussianos o terem recusado quando Frederico, o Grande, enviou, em 1774, um carregamento de batatas para aliviar a fome em Kolberg. Na Itália, a batata era usada como ração para os porcos, o que aumentava o preconceito em tê-la como alimentação humana, relata Jean-Louis Flandrin (Chronicle de Platine - Pour une Gastronomie Historique); e na França, onde hoje é um prato nacional, as primeiras receitas só apareceram em livro em 1755, na obra Les Soupers de la Cour.

Apesar de a aceitação ter sido lenta e gradual, a batata terminou vingando. Ainda no século XVIII, Catarina (também a Grande) propagou seu cultivo na Rússia, ciente de que a produtividade da cultura e sua resistência às guerras e ao frio eram uma forte arma contra a fome. E contra a sede também: da casca da batata os russos prepararam um alegre destilado cujo consumo ganharia o mundo quase dois séculos depois - a vodca. Na Irlanda, a implantação e o intenso consumo da batata permitiram a triplicação da população em 100 anos.

A batata é um exemplo eloquente das mudanças culturais produzidas com a migração pós-colombiana dos alimentos. Mas até mesmo no microcosmo mais simples da mesa familiar as mudanças foram consideráveis, principalmente em relação ao enriquecimento de cardápios. Até 1492, a mesa europeia era, nas camadas populares, bem limitada - com variações em torno do pão de centeio ou trigo, sopa de repolho e queijo. Nas famílias muito abastadas a diversidade de pratos era bem maior, mas especialmente no que dizia respeito às carnes, vindas de raças variadas. Um importante traço distintivo entre as classes sociais era o uso das especiarias trazidas do Oriente, muito caras. Elas serviam para introduzir maior quantidade de sabores, e ainda para alguns fins práticos, como disfarçar os sabores e os odores de alimentos em vias de putrefação.

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Já pelas Américas, o consumo de carne (à exceção de peixes) era bastante limitado. No Peru, por exemplo, uma das raras ofertas era a de porquinhos-da-índia (também chamados de cobaias). No México, o milho era ingrediente para o mingau matinal ou para as tortillas vespertinas, acompanhadas de mel, pimenta, feijão ou molho de tomate - às vezes temperados por iguarias um tanto exóticas, como larvas ou ovos de insetos. Ali a carne restringia-se à de peru e à de cachorros, estes últimos substituídos com a chegada do gado bovino europeu. No Brasil, os peixes de mar ou rio faziam parte do cardápio, junto à mandioca, o cará, o milho, alguma caça e as frutas silvestres.

Tanto americanos quanto europeus veriam esta sua rotina alimentar profundamente alterada. A Europa recebeu, além da batata, um outro produto que já chegou a ser considerado praga nas plantações de milho dos astecas: o tomate. Este se aclimatou melhor nas regiões mais quentes do Mediterrâneo, tornando-se com o tempo ingrediente fundamental para a cozinha do sul da Itália, compondo generosos e ricos molhos. No México o tomate já era utilizado amplamente, seja ainda verde, cortado em finas lâminas, seja bem maduro, combinado com pimenta para guarnecer pratos de feijão cozido. Das dezenas de variedades em que era conhecido na América, a que provavelmente chegou à Europa tinha uma cara diferente da que melhor conhecemos hoje: o nome italiano pomodoro (maçã dourada) sugere que ele teria a pele amarela. 


Também o tomate enfrentou certo estranhamento inicial, principalmente fora da região mediterrânea. Foi somente no século XX que a Grã-Bretanha, como outros países da Europa do norte e do leste, o adotou em sua alimentação: 'Até então ele era descrito como um alimento extremamente 'frio', causador de gota e fraco de nutrientes e substância', conta Reay Tannahill (Food in History).

A chegada à Europa do milho - elemento fundamental na formação das civilizações das Américas Central e do Sul - teve também um forte peso cultural. Como a batata, o milho permitia um maior rendimento do solo para a alimentação, possibilitando com isso o crescimento populacional. Colombo o experimentou pela primeira vez em Cuba, achando-o 'mais saboroso cozido, assado ou moído com farinha'. De lá, levou-o para a Espanha, de onde seria espalhado pelo Mediterrâneo, tornando-se familiar na região em menos de um século. Além de pães e broas, o milho possibilitou a criação de pratos que terminaram totalmente assimilados a culturas locais - caso da polenta italiana.


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O continente europeu, primeiro depositário das novidades trazidas do novo mundo, também alavancou a dispersão desses novos ingredientes por outros continentes. Caso exemplar é o das pimentas de cheiro, do tipo chili e malagueta, bem diferentes das variedades de pimentas em grão que os europeus descobriram no Oriente.

Essas pimentas, do gênero Capsicum, também estão entre as culturas que floresceram muito bem nos climas do sul da Europa, incorporando-se a pratos com molho italiano all'arrabbiata. Mas não pararam por aí. Ainda na Europa, foram adotadas pelos húngaros, que as batizaram com o termo com que designam a pimenta: páprica. Seguindo o caminho do Oriente, elas foram mais longe, chegando à Índia e à China. O milho também chegaria à Ásia pela rota da Europa, sendo adotado pelos chineses.

Através dos portugueses, chegaram à África a batata-doce, a mandioca e também o milho. Este último logo foi implantado em grande escala, menos por possíveis sentimentos humanitários dos portugueses e mais para atender um inconfessável apetite colonialista: a alta produtividade da cultura permitia o crescimento populacional - e, com isso, a multiplicação da mão-de-obra escrava ambicionada por Portugal. A adesão ao milho como alimento quase exclusivo em regiões da África foi tamanha que mais tarde provocaria nas populações que o consumiam graves problemas de deficiência de vitaminas (o que na Europa não ocorria por ser ele combinado com peixes, tomates ou pimenta).

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O chocolate vindo das Américas só veio a ser consumido com maior regularidade, na França e nos países vizinhos, nos meados do século XVII - e, mesmo assim, somente como bebida, à moda dos astecas. Foram precisos mais 100 anos para que sua forma hoje tão popular, em tabletes, começasse a ser conhecida, até se tornar um dos orgulhos da indústria alimentar francesa e de países como a Suíça e a Bélgica.

O trânsito de alimentos entre os continentes tinha duas mãos. A Europa também trouxe à América muitos ingredientes que se incorporaram no universo alimentar do novo continente. A presença dos colonizadores espanhóis e portugueses radicados nas novas terras exigia a presença de alimentos com os quais eles estavam habituados, e não disponíveis inicialmente nas colônias. O leite de vaca, por exemplo, não existia na América, dada a inexistência de gado bovino.

A carne de carneiro e a de cabra, com seu leite por extensão, vieram também como novidades do Velho Mundo. A prosaica galinha, hoje de consumo tão corriqueiro, também inexistia num continente onde reinava, como ave de consumo, o peru - levado aliás com sucesso para a Europa. Entre os cereais, o trigo é dos mais relevantes trazidos pelos colonizadores - o pão nosso de cada dia não seria feito como o conhecemos se não tivessem chegado da Europa as sementes de seu cereal de base.

Quanto a uma das mais típicas iguarias brasileiras - a feijoada, ela seria impossível sem a rota iniciada por Colombo, já que a carne de porco não existia na América. Se não bastasse a ausência de seu prato nacional, os brasileiros não poderiam sequer lamentar-se diante de uma boa dose de caipirinha, já que ela seria igualmente inviável: a cana-de-açúcar, cuja cultura hoje ocupa extensões incalculáveis de solo brasileiro, foi trazida pelos europeus, da mesma forma que o limão e as demais frutas cítricas.

Ao menos o feijão, outro símbolo de identidade nacional, já existia na América, tendo sido levado para a Europa depois de Colombo: mas o arroz consumido no Brasil, de tipo asiático, chegou somente com as navegações - as mesmas que trouxeram a banana, sem a qual não poderia vadiar sossegado o Macunaíma de Mário de Andrade.

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O curioso é verificar que essa troca alimentar entre os continentes não parou somente na ida. Muitos dos ingredientes fizeram uma escala nos países onde aportavam pela primeira vez, para daí ganhar o mundo - como as já citadas pimentas vermelhas. Em outros casos, após um estágio no exterior, eles voltaram com outra cara, vestindo nova roupagem e com sotaque estrangeiro, sendo porém muito bem-vindos em sua nova forma. A vodca, originalmente produzida a partir da batata levada da América, tem hoje nos Estados Unidos um dos mais fanáticos consumidores, da mesma forma que o rum, consumido em coquetéis por toda a Europa, veio a ser produzido na América Central com a cana trazida pelos europeus.

A América Portuguesa também foi a fonte de alimentos levados para a África, como o milho, a batata-doce e a mandioca. Estes foram incorporados a pratos, modos de preparo (como a fritura em dendê) e ingredientes (como o quiabo e o próprio dendê), trazidos de volta para o Brasil e levados à América do Norte nos navios negreiros.

O processo de troca alimentar deflagrado com as grandes navegações levou a uma certa universalização dos ingredientes, o que com o passar dos séculos só veio a se acentuar. Mas isso não significou, naquele momento, algum tipo de homogeneização nos hábitos alimentares do planeta. Pelo contrário, o que se verificou foi um enriquecimento na variedade de pratos e cardápios, já que cada povo assimilou os novos produtos criando fórmulas próprias e novas. A comida viajava o mundo e servia de instrumento de afirmação da nacionalidade. Algo que hoje, com as comidas padronizadas que chegam prontas e idênticas aos vários países, talvez não aconteça mais."

Fonte: MELO, Josimar. A rota culinária de Colombo. Playboy, São Paulo, Ed. Abril, outubro de 1992, p. 86-89; p.120.

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