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sábado, 3 de fevereiro de 2018

A imagem da Revolução Farroupilha após o fim do conflito no R.G.S.


"A reintegração dos revoltosos à vida política do Império seria tão difícil quanto necessária. O próprio desenvolvimento das batalhas mostrou ao Império que não havia peritos maiores no terreno que os comandantes militares treinados na região, e um contingente considerável deles esteve no lado revoltoso, assim como parte considerável deles esteve no lado revoltoso, assim como parte da elite provincial, característica particular em relação a outros movimentos do período. A proximidade da fronteira também se revelaria determinante, impelindo o governo imperial a buscar uma integração que não apenas exterminasse os sentimentos rebeldes, como também reerguesse a economia da província, devastada durante a guerra.

Os anos que se seguiram à revolta foram marcados por dois movimentos no discurso político: o silêncio e a suspeita. O primeiro produziu uma memória subterrânea, acompanhada de expressões de arrependimento e justificativas. O segundo, um estado de alerta acompanhado de constantes reprimendas ao que começava a constituir-se como uma identidade regional pejorativa, ao que se acrescentava a própria suspeita levantada pela evidenciação das diferenças geográficas e sociais da província em relação ao restante do Império.

Nos primeiros anos, o silêncio total e pleno foi acompanhado de recriminações. Como Caldre Fião, em O Corsário, os que se aventuraram a narrar o episódio da Farroupilha o fizeram para mostrar a falta grave que o conflito representava em relação à nacionalidade. O tom de conselho do escritor, sugerindo mais amor à província através da dedicação e patriotismo ao Brasil, seria a primeira manifestação pública na Corte de um rio-grandense que via a revolta com maus olhos. Certamente, o discurso depreciativo, que pintava a Revolução como condenável, desde o elenco de seus motivos considerados ilusórios até os seus efeitos funestos sobre os homens e sobre a produção, inaugurou o que é possível chamar de uma identidade regional pejorativa.

Seguramente não foi o único, nem na literatura, em que o Instituto Histórico e Geográfico da Província de São Pedro proclamava a necessidade de 'ingressar no panteão das glórias nacionais, segundo a conveniente imagem de defensores do território e da integridade do Brasil', nem no quadro total das manifestações. Uma observação atenta dos discursos dos presidentes da província em seus pronunciamentos mostra que sua imagem característica era ao mesmo tempo motivo de apreço e apreensão. Valores como a habilidade guerreira, adquirida nos muitos anos de guerras, tanto podiam, num mesmo comunicado, ser louvadas como parte de um conjunto que permitia à província defender o Império das ameaças provenientes dos países vizinhos, quanto ser o eixo central de uma acusação da incapacidade de estabelecer ordem e civilização, impelindo os cidadãos a cometerem crimes. Acompanhando essas digressões sobre o caráter dos rio-grandenses, estavam sempre presentes o desaconselhamento à revolta, a lembrança da misericórdia imperial que permitira o retorno pacífico à pátria e, claro, a necessidade de manter a paz. Pareceres que aconselhavam o esquecimento e o silêncio sobre os anos em que aqueles homens não aceitaram que o Rio Grande fosse governado desde a Corte.

As trajetórias políticas de alguns líderes são extremamente reveladoras da produção desses discursos. Domingos José de Almeida, o mesmo cidadão que havia sido ministro da Fazenda da República Rio-Grandense, voltou à cidade de Pelotas, onde seguiria sendo importante líder local. Retomou seus negócios, voltou a compor o quadro da Guarda Nacional e a exercer a função de juiz de paz, porém, jamais voltou à Assembleia Provincial. A grande massa documental que compõe seu acervo pessoal, depositado na Coleção Varela do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, mostra que, depois da Revolução, seguiria com o hábito de escrever cartas aos amigos. Nestas, encontramos poucas menções à Revolução após os primeiros anos. Ao fim da década de 1850, coincidindo com sua volta à imprensa, Almeida começava a recolher relatos sobre a secessão, quando surgem as primeiras cartas de arrependimento. Totalmente reintegrados ao Império, os antes rebeldes passaram a reconhecer os danos causados pelo conflito.

A mudança de postura tem várias causas relacionadas. Ao fim da década de 1850, o Império havia atendido as principais reivindicações da elite regional, posicionando-se incisivamente no rio da Prata, especialmente defendendo os interesses dos brasileiros produtores pecuários no Estado Oriental do Uruguai. Os espaços da burocracia imperial haviam sido consideravelmente expandidos, propiciando uma absorção maior dos indivíduos no aparato estatal, especialmente no nível local, criando postos de autoridade que legitimavam prestígio e poder político. Por fim, a passagem dos anos permitia perceber a revolta não mais como uma ameaça a prestígios individuais, exigindo que fosse escondida ou negada, mas admiti-la como parte de uma trajetória política, como um atestado de experiência.

Ainda ao longo dessa década o perfil dos líderes políticos começava a mudar. Diferente da primeira legislatura da Assembleia Provincial, que era composta por muitos estancieiros e militares sem qualquer instrução formal, uma geração de graduados nas faculdades do centro do país passava a assumir paulatinamente os postos de maior prestígio. E apesar da postura firme em relação aos interesses dos produtores de gado estabelecidos no Uruguai, as reivindicações se multiplicavam, enquanto os ânimos na região se inflamavam avizinhando-se uma guerra que parecia transformar o Rio Grande no principal teatro de operações. O quadro aqui esboçado, grosso modo, permitia que o sentimento de revolta regredisse.

O desenvolvimento dos fatos durante a década de 1860 mostra a colocação de agentes da política provincial em posições destacadas por conta da Guerra do Paraguai e o consequente prestígio, que culminaria na nomeação de dois ministros rio-grandenses em 1878 - Gaspar Silveira Martins para o Ministério da Fazenda e Manoel Luís Osório para o da Guerra. Para toda uma geração, o peso da suspeita que a memória da secessão trazia fora o impulsionador de uma aproximação com o centro do governo. Melhor do que pegar em armas era disputar projetos dentro do espaço mais privilegiado de decisão em todo o Império. Ainda assim, a crise econômica que acompanhou o fim do regime imperial impulsionou a abertura do centro do poder. Aliado a isso, o espaço aberto pela migração de muitos políticos do Sudeste para os partidos republicanos permitiu que as regiões periféricas fossem mais bem representadas. Era o ascenso de uma velha geração política à Corte, enquanto uma nova geração disputava espaço."

Fonte: MENEGAT, Carla & ZALLA, Jocelito. História e memória da Revolução Farroupilha: breve genealogia do mito. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, v.31, n.62, 2011, p. 52-54

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