O dia em uma missão jesuítica começava com o toque do sino. Cada morador fazia sua oração individualmente. Por volta das 7h, já estavam todos participando da missa, com as crianças cantando hinos. Minutos antes, o sino do campanário da igreja convocava a cidade a se dirigir à praça central, local onde aconteciam os jogos, os julgamentos, as reuniões políticas, as apresentações de teatro e as procissões religiosas. O café da manhã era distribuído. Se havia mortos para enterrar e doentes para visitar, essas atividades ocupavam a faixa das 8h.Na sequência começavam os expedientes para os adultos e as aulas para as crianças. Os trabalhadores andavam em procissão, que atravessava o vilarejo e deixava os indígenas em cada um de seus postos, até que o padre e os cantores voltavam sozinhos. Ao meio-dia, o Angelus e uma refeição eram seguidos por uma sesta de uma hora, depois da qual o trabalho era retomado até as 16h. Chegava então o momento da ceia, da oração do rosário e do sono. Antes mesmo das 20h, todos já estavam recolhidos e as luzes, apagadas.
O expediente de trabalho na área comum, chamada tupamba'e, durava seis horas, dois dias por semana. Nos demais dias, o indígena podia plantar na porção de terra de sua própria família, a avamba'e. Não havia dinheiro nas missões: a moeda de troca podia ser milho, mel ou fumo, dependendo da região e da época do ano. As missões exportavam esculturas, violinos, tecidos, frutas e couro. Compravam ferramentas, sal, livros e papel. Quanto a população era insuficiente para produzir alimentos, as aldeias contavam com fazendas paralelas, mantidas com escravos negros.
Nos séculos XVII e XVIII, ao sul da América Latina, o conceito de aldeia indígena seria aplicado com tamanha radicalidade que passaria a ganhar um nome específico: reducciones, em espanhol, ou missões, em português. Organizadas como cidades de coabitação entre religiosos e indígenas, chegariam ao ponto de organizar exércitos para impedir a invasão de colonos em busca de escravos entre os moradores.
As missões formariam uma das experiências mais interessantes de tudo o que se viu em termos de colonização nos últimos séculos. Importantes cidades gaúchas são resultado desse experimento, realizado na faixa de terra que engloba partes dos atuais Paraguai, Bolívia, Argentina e Uruguai e os estados brasileiros de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
Era espantoso: grupos de brancos, com motivações religiosas, reuniam habitantes locais para formar cidades ao estilo ocidental, mas com gestão delegada para os próprios indígenas. Os padres não abriam mão do controle sobre as missões, é claro. E, como de costume, exigiam que os nativos abandonassem antigos hábitos envolvendo bebidas, poligamia e consulta a xamãs. Mas a administração do dia a dia era delegada a um conselho de notáveis, formado por indígenas cristãos, trabalhadores, vestidos e alfabetizados. No auge, ao fim do século XVII e somando todas as mais de quarenta missões, mais de 150 mil pessoas participariam simultaneamente desse modelo de gestão, a maioria da etnia guarani.
Vindos da Amazônia 2 mil anos antes, os guaranis eram um povo seminômade, que passava no máximo sete anos num determinado lote de terra até exauri-la com a agricultura. Raramente usavam roupas, sobretudo os homens, e seguiam a divisão de tarefas tradicional, com homens cuidando de caça e pesca e as mulheres de todo o resto. Produziam cerâmica e armas com pedra e lascas de arenitos.
No contato com os missionários, eles reagiram bem. De maneira geral, aceitaram adaptar seu estilo de vida e se mostraram interessados na proteção que os jesuítas ajudariam a proporcionar. Os religiosos, por sua vez, seguiam a estratégia de aceitação extremamente respeitosa de alguns costumes locais.
O conselho de líderes era eleito todos os anos. Formado por índios gestores e representantes dos diferentes bairros da missão era comandado pelo parokaitara, cargo normalmente ocupado pelo cacique - dentro da burocracia dos espanhóis, era uma espécie de prefeito que respondia ao governador da província, este, sim, um espanhol, sobre o andamento dos trabalhos. O parokaitara tinha dois assessores diretos, os ivírayucu. Durante as missas e as celebrações, os três tinham o direito de sentar em lugares de destaque na igreja.
Os jesuítas costumavam assumir o controle sobre o poder judiciário, mas não tomavam decisões sobre as punições sem consultar o juiz eleito para mandatos atuais, um índio conhecido como alguacil. O exílio era a pena máxima, ainda que raramente aplicada. O mais comum era a determinação de castigos leves, geralmente punições físicas, executada por índios selecionados para a tarefa.
O serviço de saúde era eficiente: enfermeiras índias, ensinadas pelos padres, tinham o conhecimento básico para identificar sintomas e prestar atendimento de emergência. Em casos mais graves, em especial durante as epidemias, as profissionais de saúde procuravam os religiosos para que ninguém morresse sem receber a extrema-unção. Os milagres ajudavam, pois muitos índios relatavam sonhos com Santo Inácio, nos quais ele reclamava dos hábitos alimentares da pessoa e dava broncas do gênero: "Vocês comem tudo o que encontram pela frente! Por isso estão enfermos!".
Sobre quem falecia, os jesuítas diziam que, haviam encontrado Yvy Marã-ey, a terra sem mal, lugar que, segundo os guaranis, era o país sem tristeza, sem calor exagerado nem frio insuportável, onde tudo era ameno e tranquilo e as famílias admiravam ancestrais de passado supostamente glorioso. Em sonhos, os índios relatavam ver exatamente isto, o paraíso em forma de floresta sem ameaças. Ou, pelo contrário, diziam-se perseguidos por um inferno ocupado por serpentes e onças.
A educação era importantíssima, e os jesuítas treinavam professores entre os índios. Como geralmente viviam nas missões em duplas, com visitação ocasionais de colegas e superiores da ordem, os religiosos só davam conta de lecionar religião. As aulas eram ministradas no idioma local, em geral a língua guarani, e raras vezes em espanhol. Meninos e meninas eram separados em salas diferentes.
As missões seguiam um traçado urbanístico padrão: uma praça central reunia o cemitério, a escola, a igreja, e o hospital, as janelas sempre voltadas para a praça, onde se encontravam uma cruz e uma estátua do santo padroeiro da cidadezinha em questão. As casas, normalmente construídas de madeira, mas às vezes também de pedra, ficavam distribuídas em torno da praça, com quartos agrupados ao redor de varandas comunitárias.
Nos limites das cidades, que geralmente eram muradas, criava-se gado e plantavam-se pomares, cana-de-açúcar, tabaco, algodão e erva-mate, boa parte desses produtos para exportação. Havia índios treinados para serem tecelões e ferreiros, produzindo armas, arados de ferro e roupas. As missões maiores contavam ainda com silvícolas treinados para fabricar chapéus ou barcos, músicos, pintores e especializados na produção e cópia de livros manuscritos. Para clarear as edificações, uma argila esbranquiçada era usada como cobertura das paredes externas.
Havia pontes, canais e fontes de água em quantidades incomuns até mesmo em cidades europeias de porte semelhante. E também silos, depósitos e casas construídas para abrigar as viúvas. Os órfãos eram encaminhados para novas famílias, que se organizavam segundo os moldes de pai, mãe e filhos, não mais na vasta reunião de parentes e esposas em ocas únicas de grandes proporções.
As igrejas eram decoradas seguindo um estilo barroco, com esculturas feitas de madeiras de diferentes cores e texturas, reunidas na mesma imagem, e com pinturas a óleo em tela. Os relevos em arenito reproduziam cenas da Bíblia ou animais importantes para as tradições dos silvícolas.
Fonte: CORDEIRO, Tiago. A grande aventura dos jesuítas no Brasil. São Paulo: Planeta, 2016, pág. 158-164.