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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

As Bruxas da Ilha de Santa Catarina - Parte 02



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A bruxa adora chupar o sangue das criancinhas.

Os pais se precavêm contra essa, possibilidade pondo ao pescoço da criança um rosário de nove dentes de alho e queimando a palha das liliáceas no interior da casa, para afugentar as bruxas.

Não há dúvida de que se trata de bruxedo quando uma criança de menos de um ano, ao adoecer, apresenta o cabelo acarneirado, o corpo coberto de manchas roxas, e mesmo sangrando em alguns pontos, e se mantém de mãos cruzadas sobre o peito (às vezes também os pés cruzados), desatando num choro que mete dó, ao anoitecer, principalmente às sextas-feiras. Em geral, quando a misteriosa moléstia chega a este ponto, os pais já recorreram ao médico da localidade, sem que os seus remédios tenham surtido efeito visível. Vendo a criança definhar, os pais chamam alguma benzedeira ou milagreira, conhecida na redondeza. Esta, ao chegar à casa, confirma - se ficar confusa ou se se puser a bocejar incontidamente - que alguma bruxa está exercendo a sua ação maléfica sobre a criança.

Para penetrar em casa, e chupar o sangue dos pequeninos, as bruxas afinam e alongam o corpo de maneira a passar pelo buraco da fechadura.

A benzedeira ou milagreira persigna-se e aconselha, para obter a cura do doente, ou tratamentos mágicos, se o caso parece de menor importância, ou alguma das armadilhas tradicionais, poderosas para desencantar e desmascarar as bruxas, nos casos mais graves: 

Tratamentos

1) Faz-se um cozimento com cisco das três marés, com o qual se banha a criança. Após o banho, dão-se-lhe três colherinhas do cozimento para beber. O tratamento deve continuar durante nove sextas-feiras. (Em certas épocas, o mar, avançando pela praia, deixa, em três dias sucessivos, camadas de detritos, cisco, a pequena distância uma da outra. Um pouco dos detritos de cada qual dessas camadas forma o cisco das três marés, ingrediente usado para este tratamento mágico).

2) Uma variante do anterior. Faz-se um cozimento com ciscos das encruzilhadas e com ele se dá um banho na criança, fazendo-a beber, em seguida, três colherinhas do líquido. Os entendidos dizem que o remédio se mistura com o sangue da vítima - o que enjoa as bruxas, que dela desistem.

3) Apanha-se uma pedra numa coivara e faz-se uma fogueira em torno dela, até que a pedra fique em brasa; atira-se a pedra numa vasilha com água virgem da fonte; quando a água se torna tépida, retira-se a pedra e dá-se um banho na criança, administrando-lhe, em seguida, três colherinhas da água. A pedra, depois de usada, deve ser reposta no mesmo local. Durante nove sextas-feiras deve-se repetir o tratamento, utilizando, de cada vez, uma pedra diferente.

Armadilhas

1) O pai toma a primeira camisa usada pela criança, criva-a de agulhas, coloca-a dentro de um pilão de chumbar café e, com a mão de pilão, soca-a até que as agulhas penetrem na madeira do pilão - ou seja, no corpo da bruxa, que, não podendo resistir à dor, vai procurar a família, para confessar-se culpada, e perde o encanto.

2) Põe-se uma ceroula do pai, disposta em cruz, sobre a criança. Reza-se o Creio-em-Deus-Padre de trás para diante. Sobre a mesa, ou numa cadeira, coloca-se um pires com água benta, conseguida na igreja, ou comum, apanhada na fonte numa sexta-feira antes do nascer do sol; dentro do pires, um bocado de cera virgem e a chave da porta principal. Os pais devem ficar acordados e atentos, no escuro. Quando a criança chorar (sinal de que a bruxa está a chupar-lhe o sangue), os pais devem, com a cera virgem, tapar o buraco da fechadura. Basta aguardar então o desencanto da bruxa, que se dará exatamente quando o galo preto cantar.

3) Dentro de um baú de folha-de-flandres acende-se uma vela benta; reza-se o Creio-em-Deus-Padre, de trás para diante, sobre a chama da vela e abaixa-se a tampa do baú de tal modo que o ar possa nele penetrar, mantendo viva a chama. Com a casa às escuras, todas as chaves devem ser retiradas das portas e colocadas em cima do baú. Quando a criança chorar, os pais apanham as chaves de cima do baú, introduzem-nas nos buracos das fechaduras e acendem as luzes. Presa, a bruxa, coagida pela oração e pela vela benta, tenta fechar o baú. E, ao sentar-se em cima dele, perde o encanto.

4) Uma variante da anterior. Num meio alqueire de medir farinha, junto à cama da criança, acende-se uma vela benta, sobre a qual se reza o Creio-em-Deus-Padre de trás para diante. A casa deve ficar às escuras, com todas as chaves sobre o meio alqueire. Quando a criança chorar, os pais apanham as chaves, introduzem-nas nas fechaduras e acendem as luzes. A bruxa, sentindo-se presa, procurará sentar-se sobre o meio alqueire, com o que se desencantará.

5) Põe-se uma tesoura, aberta em cruz, numa mesa próxima ao berço da criança. As chaves das portas devem estar num pires com água benta. A casa estará às escuras. Quando a criança chorar, os pais introduzem as chaves nas fechaduras e acendem as luzes. A bruxa, que tem horror a tesouras abertas, perde o encanto.

6) Cozem-se folha de guiné, cordão-de-frade, limoeiro e arruda, nove dentes de alho e um pouco de mostarda. Com esse cozimento dá-se um banho na criança. |Todos os irmãos e todas as pessoas da família, residentes na casa, devem lavar os pés na mesma água, até chegar a vez do pai, que reza o Creio-em-Deus-Padre, de trás para diante, sobre a vasilha. Fecha-se então a porta, deixando-se a chave em falso, quase a cair, pela parte de dentro. Põe-se a vasilha com água do cozimento abaixo da fechadura. Para penetrar na casa a bruxa deve empurrar a chave, que cairá dentro da vasilha, fazendo com que ela se desencante. Esta armadilha deve ser preparada às sextas-feiras, à hora da Ave Maria.

Se estas armadilhas, mais simples, não dão resultado, - há bruxas mais sabidas e mais experientes do que as outras, que não se deixam apanhar com facilidade, - preparam-se outras, mais fortes e mais terríveis, não apenas para desmascarar, mas também para revidar, de algum modo, os poderes maléficos das bruxas, como as duas seguintes:

7) Num prato com água, perto da cama da criança, põem-se nove dentes de alho, numa sexta-feira, à hora da Ave Maria, rezando-se o Creio-em-Deus-Padre, de trás para diante. Uma faca bem afiada deve estar sob a cama do doente. Retiram-se todas as chaves das portas, para que a bruxa possa entrar. Quando a criança chorar, dá-se-lhe uma colherinha da água que está no prato e corta-se, com a faca, um pedacinho da ponta de uma fita vermelha, comprida, que surgirá, descendo da cumeeira da casa, em direção à boca da criança. Guarda-se o pedaço da fita, sem nada dizer a ninguém. Uma estória corrente, relativa a esta armadilha, conta que o pedacinho de fita vermelha se transformou, no bolso do pai, numa orelha humana - a orelha da bruxa, que deste modo pode ser identificada.

8) À hora da Ave Maria, numa sexta-feira, põe-se, numa mesa próxima à cama da criança, um copo de cachaça sobre uma carta (usada) de baralho; com um cigarro de palha, de fumo-de-corda forte, e uma faca afiada e pontiaguda, faz-se uma cruz sobre a mesa. Reza-se o Creio-em-Deus-Padre, de trás para diante. Quando a criança chorar, retira-se o copo de cima da carta de baralho, apanha-se a faca e com ela se golpeia ou decepa qualquer parte de um bicho que aparecerá nas bordas do copo ou em cima do cigarro ou da carta de baralho. Uma estória referente a esta armadilha conta que o pai, tendo cortado a pata de um rã que se equilibrava na borda do copo, viu-a transformada em dedos humanos - os dedos da bruxa que chupava o sangue do seu filho.

Nestes dois últimos tipos de armadilha, no dia seguinte corre a notícia de que uma mulher da vizinhança foi acidentada. O pai, que deve manter o maior sigilo, terá de procurá-la, para que a armadilha dê o esperado resultado - a transformação mágica, em parte do corpo, das coisas que conseguiu arrancar à bruxa, quando esta cumpria o seu triste destino.

Sempre que preparam uma armadilha, os pais devem estar prevenidos com um rabo-de-tatu, conservado no fumeiro da cozinha, para, quando a bruxa reassumir a forma humana, aplicar-lhe uma boa surra, até fazer sangue. Para reforçar a quebra do encanto, as feridas da bruxa devem ser lavadas em salmoura - sal, pimenta e alho ou sal, cachaça e vinagre.

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As bruxas, poder maléfico solto sobre o mundo, são a maldade pela maldade, sem endereço nem predileções: não há a possibilidade de alguém as induzir a perseguir esta ou aquela pessoa e nem mesmo os parentes e os amigos estão livres das suas travessuras ou das suas crueldades.

Para a população em geral, são elas as responsáveis diretas, tanto por boa parte dos acontecimentos sem explicação plausível como por apreciável percentagem da mortalidade infantil (130,2 por mil nascidos vivos em 1957) registrada na ilha de Santa Catarina."

 Fonte: CASCAES, Franklin. As bruxas da Ilha de Santa Catarina. In: Revista Brasileira de Folclore, Rio de Janeiro/RJ, Ministério da Educação e Cultura, 1963, pág. 125-130.