Padre PEDRO LUÍS
CAÇAPAVA DO SUL - Naquele dia de mornidão, entrei no rancho de tábuas da morane Maria Angélica Jardim, 75 anos. Ia eu acompanhado da capelinha nova, miudinha, atualizada, côr de verniz brilhoso de sabugueiro. A imagem nela anichada é desbastada, enxuta de carnes e vestes, cintura de vespa, graciosa e esbelta, tôda em estilo grego antigo. É escultural e aprumada. Dá ares do talhe de Juno, que vi no Museu de Louvre.
O caçapavano Aldo Valli Garcia informara-me que, perto do Forte de Dom Pedro Segundo, existe a famosa Fonte de Nossa Senhora. De chegada, perguntei a Maria Angélica, moradora das proximidades da fortaleza, se conhecia a histórica fonte. Respondeu que sim. Cravejei-a, então, de perguntas. E ela tudo foi debulhando com simplicidade. Trata-se de história ou até de lenda que poderá servir de enfeite tradicionalista a Nossa Senhora Conquistadora.
Maria Angélica contou assim o maravilhoso fato: diziam os antigos que em Caçapava houve ano de sêca braba. Êsses antigos são seus avós e seus bisavós. Não é o pai, que êsse o perdeu ela ainda criança. Vai, um dia, durante a estiagem furiosa aquela, e surgiu a Fonte Milagrosa. Linda a maneira de seu aparecimento. Um par de crianças andava cuidando de uma ponta de ovelhas, que pastavam a pequena distância do hoje Forte Dom Pedro Segundo, local entrecortado e manchas de chirca, embira, espinho-de-são-joão, sucará, mamica-de-cadela, espinilho, xale-xale, molho e unha-de-gato, entre moitas de arbustos embaraçantes. Era dia metálico, de queimor e torração. O casal de crianças procurava, igualmente, água. De repente, apareceu-lhes, à flor da copa esmirrada de uma capororoca ou jutaipeba, linda senhora. Até parecia a Virgem Maria. O branco do vestido dela recortava-se no azul celestial do céu distante. Nada disse e nada acenou. Era, no dizer do poeta Elias Regules, nosso velho amigo do Uruguai, 'como una prenda perdida, como carícia robada... cosas chicas para el mundo, pero grandes para mí'. As crianças dispararam logo para casa. Contaram o sucedido aos pais. Ao regressarem êstes com seus filhos, nada encontraram. Só notaram umidade no local. Cavaram com enxadas e pás. Apareceu água, pouca no início. Cavando mais, aumentou. Calçaram-na. Borbulhou a brotação natural do líquido, que cinturaram de tijolos, e estenderam em sua frente pinguelas de pedra. Destarte, desde então, vai ela servindo às necessidades das gerações ribeirinhas. É sangria milagrosa na terra.
Logo surgiram os zombadores e graciosos, explica-nos a nonagenária Maria Alzira Lima, cujo pai estêve na Guerra do Paraguai e cujo avô entronca em 1780. 'Os troçadores botavam a lata na fonte, e a água sumia, mas os bons tiraram a quantia que queriam. Os maus deviam pedir licença. Alguns até diziam: Quero ver se não tiro... Tiravam o quê! Botavam o balde e nada vinha. Eram castigados, e só tiravam quando Ela queria'.
Mais abaixo da fonte existe sempre a enxameada das lavadeiras. O dia da mornidão era 8 de outubro de 1971, e lá cheguei também por acaso com a Virgem Conquistadora, que tomou posse de sua velha fonte. A vegetação do manancial límpido fechou-nos a todos naquela hora num leque verde. As comadres chilreavam festivas. Foi hora de espiritualidade e recuerdos. Repetimos que a Antiguidade é a aristocracia da História. Ao pé da fonte, e vizinhando com a capororoca corajosa, existe uma erva-de-passarinho muito grande, que matou a árvore em que se aninhara, e se adonou do chão, talvez contemporânea das crianças. Representa o inimigo da Graça e da Vida.
Agora, escutem um ângulo de relêvo na história: Zeca Jardim era o avô,e Emiliano da Rosa Jardim era o bisavô de Maria Angélica, recuando até 1780. Reforça a história que narramos o sr. Rodolino da Rosa Garcia, estudioso das cousas de Caçapava. Quando foi construído o Forte de Dom Pedro, os engenheiros se serviram da água da célebre fonte, e providenciaram na escavação de outras fontes, por exemplo, a de Santo Antônio e a de Conselheiro d'Andrea, esta aformoseada."
Fonte: O PIONEIRO (Caxias do Sul/RS), 23 de Outubro de 1971, pág. 12