A vinda da família real em 1808 e a Independência em 1822, bem como a decadência da velha lavoura, estimularam o aumento progressivo da importância das cidades; embora no decorrer do século XIX a população urbana continuasse muito menor que a rural e a economia permanecesse essencialmente agroexportadora e baseada no latifúndio, o centro de poder deslocar-se-ia para os espaços urbanos.
Desde então, principalmente nas capitais, cada vez mais reclamos chegariam ao poder público para que tomasse providências enérgicas e retirasse de circulação os desocupados ou desordeiros. Na época, a prisão era o destino comum dos criminosos, arruaceiros, vadios e loucos; e, nos casos mais evidentes de desarranjo mental, estes eram levados às enfermarias dos hospitais da Irmandade de Misericórdia – conhecida associação filantrópica leiga católica – o que não significava tratamento médico algum.
Na verdade, no que se refere às enfermarias de alienados da Santa Casa imperial, parece que não havia vantagens com relação à Cadeia Pública. Em sua tese de doutoramento (graduação em medicina) Considerações gerais sobre a alienação mental (1837), Antonio Luiz da Silva Peixoto descreveu o local como sem “regimen, limpeza, polícia e caridade”, considerando “calabouço” um nome mais apropriado ao lugar.
Além da Santa Casa da Corte, desde o início do século XIX, outros hospitais de caridade das principais cidades brasileiras mantiveram, de forma inconstante e sob as mesmas condições miseráveis, divisões destinadas aos insanos, que precederam a criação de hospícios exclusivos para alienados. Vale ressaltar que, nos documentos daquele século, os termos “asilo”, “hospício” ou “hospital” eram usados indistintamente como sinônimos, no sentido de hospedagem destinada àqueles que dependessem da caridade pública, como os órfãos, os expostos (recém-nascidos abandonados), os mendigos, os lázaros, etc.
Tais hospitais poderiam contar com uma assistência médica precária e eventual, mas sua principal intenção era caritativa: dar aos necessitados abrigo, alimento e cuidados religiosos. O mesmo se deu com relação aos estabelecimentos destinados ao recolhimento de alienados pobres, que surgiram bem antes da psiquiatria nacional constituir-se como uma disciplina médica delimitada, quase sempre fundados a partir de estruturas asilares das Santas Casas de Misericórdia – conforme se pode concluir da análise de documentos oficiais, como os relatórios dos presidentes de várias províncias brasileiras (Maranhão, 1841-1887; Pará, 1848-1889; Pernambuco, 1846-1888; Rio Grande do Sul, 1852-1885; São Paulo, 1848-1889).
Como se sabe, o primeiro destes hospícios exclusivos foi fundado pelo imperador Pedro II que, como ato filantrópico comemorativo ao dia de sua sagração, resolvera “criar um hospital destinado privativamente para tratamento de alienados”, anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia da Corte (Decreto no. 82, de 18 de julho de 1841).
O Hospício Pedro II levou cerca de dez anos para ser construído, e o suntuoso edifício da Praia Vermelha foi inaugurado em 1852. Tanto as articulações políticas que levaram ao decreto da fundação, quanto a mobilização social em torno da construção do hospício foram conduzidas por José Clemente Pereira (1787-1854), magistrado português de destacada atividade política no Primeiro e Segundo Reinados. Na dupla condição de ministro do Império e de provedor da Santa Casa, Clemente Pereira conseguiu levantar o hospício com dotações públicas e ainda com o dinheiro de loterias e da concessão de títulos nobiliários em troca de doações para a obra. Dinheiro este que, segundo a implacável pena de Machado de Assis, o próprio ministro chamaria de “imposto sobre a vaidade”.
Durante o Segundo Reinado (1841-1889), foram ainda criados hospícios exclusivos para alienados em São Paulo, Pernambuco, Pará, Bahia, Rio Grande do Sul e Ceará. Entretanto, apesar da criação desses asilos específicos, somente perto da proclamação da República os alienistas ocupariam tais espaços de forma significativa, deslocando as poderosas administrações leigas das Santas Casas e as ordens religiosas que prestavam serviços nesses locais. Ainda assim, os médicos demorariam até o início do século XX para tomar efetivamente a direção dos hospícios de alienados, que passaram então por um processo de secularização.
Fonte: ODA, Ana Maria Galdini Raimundo
& DALGARRONDO, Paulo. O início da assistência aos alienados no Brasil ou
importância e necessidade de estudar a história da psiquiatria. In: Revista
Latino-americana de Psicopatologia Fundamental, ano VII, n.1, mar. 2004,
pág. 129-131.