Fonte: FOLHA DE HOJE (Caxias do Sul/RS), 29 de Janeiro de 1994, pág. 03
História, Genealogia, Opinião, Onomástica e Curiosidades.Capão do Leão/RS. Para informações ou colaborações com o blog: joaquimdias.1980@gmail.com
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domingo, 23 de agosto de 2020
A primeira escola de Porto Alegre
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Nos primeiros dias do mez de janeiro de 1800 appareceram nas esquinas das ruas Formosa e da Graça desta cidade de Porto Alegre uns cartazes com o seguinte annuncio:
'Antonio d'Avila, recem-chegado a este continente, participa ao publico que vai abrir na rua da Ponte, perto da ponte, uma escola para ensinar a lêr, escrever e contar, e doutrina christã. As pessoas que quizerem se aproveitar do seu prestimo podem trazer os seus filhos para a dita escola.'
Foi, pois, aberta, no dia 8 de janeiro de 1800 a primeira escola regular que teve Porto Alegre, porque até então aprendia-se a soletrar por obsequio de qualquer individuo, que o podia fazer, gratuitamente, ou por mesquinha paga a individuos que nem ao menos sabiam fazer uma conta de sommar.
O leitor necessariamente quererá saber quem era este Antonio d'Avila, que tão modestamente se apresentava a exercer o honroso myster de instituidor da mocidade.
Antonio d'Avila appareceu aqui de maneira um tanto mysteriosa; ninguem sabia d'onde elle viera; houve quem suppozesse que, sendo familiar da ordem dos Jesuitas, com a interdicção d'ella aqui viera dar incognito e com nome supposto; mas tudo isto era uma conjectura, porque nunca se soube ao certo sua origem que elle occultava cautelosamente.
O aspecto de Antonio d'Avila inspirava antipathia: com semblante sempre carregado, seus olhos negros e encovados mettiam medo ás crianças, que tremiam só com a sua presença.
Como se vê do annuncio acima transcripto, sua aula foi estabelecida na rua da Ponte, perto da ponte que deu nome á rua.
É possivel que o leitor queira tambem saber onde estava essa ponte, que tradicionalmente conhece pelo nome da rua, que já perdeu sua designação popular para tomar o nome historico de 'Riachuelo' que rememora o mais brilhante feito da esquadra brazileira na guerra do Paraguay.
Vamos satisfazer sua curiosidade.
O leitor certamente conhece a casa do finado Visconde de S. Leopoldo, situada na antiga rua da Igreja, hoje chrismada com o nome de Duque de Caxias, casa que é habitada pelo illustre Visconde de Pelotas, um dos herdeiros d'aquelle primeiro visconde.
O quintal desta casa forma um desfiladeiro que vai ter á antiga rua da Ponte, fechado por um muro que faz frente a esta rua.
O transeunte, ainda hoje, ao passar por esta parte da rua do Riachuelo, especialmente no inverno, nota ali uma humidade constante em frente ao beco do Fanha, alcunha porque foi conhecido Ignacio Manoel Vieira que o estabeleceu em terreno proprio quando fez um sobrado que se vê no mesmo beco com sacadas de rótula, já em ruinas, parecendo uma mumia para mostrar á posteridade como eram as nossas antigas edificações.
Do lado da rua da Ponte, onde termina o desfiladeiro da mencionada casa do Visconde de S. Leopoldo, existiam umas vertentes, que, com as aguas que desciam do morro durante as chuvas, formavam ali uma sanga que por seu turno abriu caminho para leval-as ao rio, originando esse trajecto uma especie de arroio, onde foi collocada uma tôsca ponte de madeira.
Já sabe o leitor onde existiu a ponte. Procuremos agora a casa onde foi estabelecida a escola que, pelo annuncio, sabemos estar perto d'ella.
Ainda em frente ao muro do quintal do Visconde de S. Leopoldo, do lado da rua Clara, encontrará uma casa enterrada para a qual se desce por seis degraus. É justamente nessa casa que foi estabelecida a aula que nos occupamos.
A escola, que tão modestamente começou, em pouco tempo alcançou o numero de cincoenta alumnos, porque então não havia outra, sendo obrigados os pais, que não queriam deixar seus filhos analphabetos, a entregal-os aos rigores de um professor que foi alcunhado por si proprio com o pouco sympathico qualificativo de 'amança-burros'.
Antonio d'Avila desempenhava bem o seu qualificativo de - amança-burros.
Sem que lhe faltassem habilitações, e mesmo illustração, carecia completamente de todas as qualidades necessarias para educar a mocidade. Genio irascivel, cruel mesmo, em vez de ser olhado pelos discipulos com o respeito analogo ao que se tributa a um pai, era ao contrario temido como um tyranno: - tal era o horror que inspiravam aos miseros meninos os seus modos grosseiros e insolentes.
Penetremos na aula.
No vão, que fica entre a porta e a janella, está uma pequena mesa, um pouco afastada da parede para dar lugar a uma poltrona com assento de sola, onde se accomoda o professor.
Por detraz do professor, pendente da parede, está uma cruz de madeira pintada de preto, que é como que o symbolo da escola.
Á esquerda da sala vêm-se trez ordens de bancos á moda dos circos de cavallinhos ou de rinhas de gallos (em amphitheatro), onde se sentam os meninos, sendo os maiores no primeiro banco e os outros nos bancos superiores, guardadas as gradações de adiantamento.
Á direita vê-se um grande banco, tomando quasi todo o comprimento da sala, com altura sufficiente para servir de escrevaninha, e a par delle outro da mesma extensão e com altura proporcionada a nelle se assentarem os meninos quando escrevem.
Por detraz da sala da aula, em um quarto, com uma janella para a área, ha igualmente dous bancos e uma meza. Fórma esta peça uma outra aula de estudos secundarios, latim e francez, cujos alumnos são em numero de trez ou quatro.
Examinemos agora o seu methodo de ensino.
A cada um discipulo principiante é destribuido um pedaço de papelão sobre o qual, em um quarto de papel, está grudado o abecedario escripto pelo professor.
Da mesma fórma, sobre pedaços de papelão são destribuidos aos meninos todas as cartas de nomes, sempre escriptas com lettra de mão, como se dizia então (manuscriptas).
Depois de saberam toda a escala das cartas passam á leitura da doutrina christã ainda escripta por lettra de mão.
A doutrina christã forma a base da instrucção. Duas vezes por semana são examinados os meninos rigorosamente em todas as suas orações, soffrendo crueis castigos, a maior parte das vezes immerecidos porque as faltas dos examinandos são filhas do terror que inspira o professor aos meninos seus discipulos.
Da doutrina christã passam elles a lêr, em quadernos escriptos pelo professor, trechos do Velho e do Novo Testamento, sobre cujos artigos preleccionava com pericia pouco commum o Sr. Antonio d'Avila.
Depois desta leitura se exercita o discipulo na leitura de sentenças dos tribunaes judiciarios, escolhidas á dedo entre as mais crueis, como, por exemplo, a que comdemnou o martyr brazileiro Francisco José da Silva Xavier (o tira-dentes) e seus companheiros, a fim de guiar e acostumar o espirito docil da infancia á obediencia cega ás ordens de El-rei Nosso Senhor.
Só depois de recebida toda esta instrucção é que se fornece ao alumno a Cartilha do Padre Ignacio.
Recebido este ambicionado presente, que annuncia ao menino a approximação do termo do seu martyrio, entra o coitado em nova lucta intellectual que tem de lhe custar muitas duzias de bôlos.
Para logo, elle desconhece a lettra de imprensa, o que não admitte o tyranno professor. Acostumado a ouvir a leitura corrente do discipulo, não póde soffrer pacientemente a difficuldade que elle encontra nos novos caracteres que é preciso conhecer a fundo para poder lêr correntamente.
Trez vezes por semana dão-se os meninos ao exercicio da escripta, principiando por fazer riscos perpendiculares, copiados de traslados. D'ahi passam a escrever as lettras do abecedario a lapis para serem depois cobertas com tinta, e por fim escrevem maximas moraes.
Cada discipulo ao acabar a sua escripta levanta-se da escrevaninha e, depois de a apresentar ao professor sem ter coragem de levantar os olhos, toma o lugar que lhe compete no banco de estudo e de lá espera como o comdemnado a leitura da sentença.
Terminada a apresentação das escriptas, são ellas minuciosamente examinadas pelo professor, que á proporção que as vê, segundo a boa ou má prova, vai passando-as para um ou outro lado da meza, escrevendo na parte superior de grande parte dellas os algarismos 2, 4, 6 ou 8 (sempre numeros pares) e assim por diante.
As escriptas tem cada uma a assignatura do alumno respectivo. Terminado o seu exame cada menino é chamado por sua vez á meza do professor, que silenciosamente lhe mostra, apontando, o algarismo lançado no alto da escripta.
O menino, sem fazer a menor reflexão e com olhos supplicantes, vai apresentando a mão para receber o castigo: nem mais um nem menos um bôlo do que o numero que foi escripto. A sentença é irrevogavel. Só é perdoada essa condemnação em vista de um perdão apresentado pelo paciente.
Este perdão é obtido pelo alumno, raras vezes, ou por distincção no argumento ou por algum presente de doces ou fructas com que algumas mães mais perspicazes adoçam os rigores do desalmado professor.
Ao ser apresentado o presente pelo menino, o professor desanuvia o semblante e com um sorriso amavel diz: 'Diga á sua mãe que lhe fico muito obrigado pela sua lembrança'. O menino faz uma pequena reverencia e encara o professor de quem (dá a entender) espera uma recompensa: este, olhando-o benevolamente, pega uma tira de papel, escreve nella simplesmente a palavra 'Perdão' pondo abaixo della a rubrica Avila, e a entrega ao menino que, comprimentado com pequenos acenos de cabeça por todos os collegas, toma o seu lugar no respectivo banco.
A aula abre-se pontualmente ás 7 horas e meia, mas só ás 8 entra o professor. Com a sua chegada todos os discipulos se levantam e sôa pela sala a saudação cantada: 'Bons dias'. Depois de tomar assento em sua poltrona, com a gravidade de um soberano, faz o professor um signal significativo e todos se assentam.
Principia então o estudo da leitura, que é cantado, deleitando-se o professor com este exercicio um tanto musical, que muitas vezes serve para dar a conhecer uma aptidão que mais tarde tem de ser aproveitada pelo mesmo professor, que é muito entendido em musica.
A aula é dividida em quatro decurias tendo cada uma por chefe um dos discipulos mais adiantados para ensinarem os principiantes, havendo ainda um decurião-mór que tem uma autoridade absoluta sobre toda a aula e que substitue o professor em qualquer emergencia.
Este pequeno régulo, por sua vez, no desempenho de sua honrosa tarefa arma ao pobre companheiro, com quem tem alguma conta a ajustar, um capitulo de faltas que não commetteu e que lhe custa um castigo de uma duzia de bôlos.
O processo aqui é summarissimo. Ouvida a acusação, sem a menor defeza ou audiencia do acusado, é elle sentenciado ou antes comdemnado.
Frequentes vezes no meio da algazarra musical do estudo chega aos ouvidos do professor o som de uma badalada da sineta da Matriz, que, ainda em construcção, tem dous pequenos sinos suspensos sobre quatro esteios de onde com seus toques festivos ou lugubres chama os fieis á casa de Deus.
Ao som da sineta segue-se o grito do professor: - Silencio! e fazendo-se este immediatamente ouve-se facilmente segunda, terceira, quarta e quinta badaladas. Então o professor levanta-se, vai ao seu aposento, que é na mesma casa voltando logo vestido com casaca de lila preta, calções da mesma fazenda e sapatos de fivella, com seu espadim á cinta.
Os meninos, que conhecem o estylo da aula, levantam-se todos, ao apparecer o professor, como esperando a voz de marcha.
Finalmente sahem da bocca do professor as palavras: - Vamos acompanhar Nosso Pai. O decurião-mór toma a cruz, de que já fallei, e põe-se á testa do prestito, que formado a dous de fundo, com as cabeças descobertas, põe-se em movimento na direcção da igreja, indo na retaguarda o professor com um dos decuriões de cada lado.
Chegados á igreja fazem a sua entrada na mesma ordem em que vão, indo ajoelhar-se no centro de modo a ficarem os da frente quasi junto ao altar, porque, a igreja estando ainda em construcção, são os officios divinos celebrados na vasta sachristia que lhe fica contigua. Acabada a oração dispersam-se os meninos pegando cada uma tocha; e, formando alas, põe-se na rua a procissão em caminho da casa do enfermo que reclama os ultimos confortos de nossa santa religião, indo sempre precedendo a procissão o symbolo da escola.
Ao terminar a procissão do Viatico volta o prestito á escola onde o professor applica algumas palmatoadas áquelles que durante o trajecto não se comportaram com a gravidades e respeito devidos ao acto.
Aos sabbados, guardadas as mesmas formalidades que acabamos de descrever, põe-se a aula em movimento, com a sua cruz á frente, para ouvir a missa que é rezada logo que se apresenta na igreja o professor com os seus discipulos.
A contabilidade encerra-se nas quatro operações arithmeticas, regra de trez e uma conta de juros. A grammatica só é explicada aos discipulos de latim. Ordinariamente ás quartas e sabbados ha argumento de taboada. Umas vezes, quando o professor está de bom humor, como para divertir-se, manda que os meninos se argúam mutuamente, tomando o interrogante a palmatoria com a qual á guiza de mestre applica ao seu contendor um bôlo por cada ponto. Outras vezes colloca elle um menino (que raramente tem mais de oito annos) sobre um tamborete, pondo-se o mestre de pé para interrogal-o. Só este apparato deixa a pobre criança em tal excitação que nada sabe responder, resultando de tão barbaro systema de argumentar taboada sahir o menino da escola ás vezes com as mãos inchadas sendo precizo laval-as com salmoura para evitar a inflammação.
Eis ahis mais ou menos descripta a aula do professor Amança-burros de gloriosa (!) memoria.
Visitemos agora a sua aula de latim e francez.
Aqui a sua natureza se transforma. Á sahida do ultimo discipulo da escola primaria, ás onze horas da manhã, apparece o professor no quarto, que já descrevemos, dando aos alumnos uns - Bons dias, senhores; feito o que toma lugar na cabeceira da meza, ficando os discipulos assentados no banco em frente á mesma.
É chamado cada um por sua vez. Depois da lição da artinha (de cór) faz elle diversas perguntas de grammatica que o discipulo vai respondendo entre o temor e a esperança de acertar. O professor principia mansamente a sua explicação procurando fazer-se bem comprehendido; mas si o discipulo, baldo de intelligencia facil, não comprehende logo a explicação dada, começa o professor sem demora a inflammar-se, gritando loucamente e acabando as mais das vezes pela applicação de alguns bôlos.
Amança-burros além do francez, em que não era forte, conhecia bem a lingua latina estando bastante familiarisado com os classicos. Traduzia mimosamente os poetas latinos, como Virgilio, Horacio, Ovidio, etc. Teve o prazer de apresentar excellentes discipulos em latinidade que traduziam facilmente os melhores livros classicos. O seu curso de latim era feito em cinco annos.
Si a natureza lhe tivesse dado um genio menos aspero e tivesse tido uma educação pautada nos principios da equidade e brandura que são o caracteristico dos melhores instituidores modernos, seria o seu nome até hoje recordado com gratidão, porque foi Antonio de Avila um homem intelligente, trabalhador, methodico e de costumes moraes austeros, - dotes estes que desappareciam para realçar sómente o seu genio irascivel."
Fonte: ANNUARIO DA PROVINCIA DO RIO GRANDE DO SUL PARA O ANNO DE 1885. Porto Alegre, Gundlach & Cia., 1884, pág. 155-162.
Antonio Candido da Silva Job
(...)
Está de lucto o Jornal do Commercio, pelo fallecimento, occorrido hontem á noite, do seu proprietario, nosso collega Antonio Candido da Silva Job.
Era natural de Triumpho e contava sessenta e tantos annos de idade.
Por occasião da guerra do Paraguay, commandou, no Rio Grande, como capitão, uma companhia de guardas nacionaes, desistindo dos vencimentos a que tinha direito.
O governo imperial galardoou os patrioticos serviços do capitão Job, concedendo-lhe o officialato, e, mais tarde, a commenda da ordem da Rosa.
Em Pelotas o digno cidadão occupou varios cargos, presidindo tambem uma loja maçonica.
N'esta capital o commendador Job foi administrador da mesa de rendas.
Mais tarde comprou do sr. Manoel Antonio da Silva a empreza do Jornal do Commercio, de sociedade com o sr. Achylles Porto Alegre.
Ultimamente, aggravando-se-lhe incommodos de que soffria, sobreveiu lhe a morte.
Endereçamos á exma. familia do estimado cidadão, e aos nossos collegas do Jornal, as expressões do nosso pezar.
- As cerimonias do enterramento annunciam-se para as 5 horas da tarde, devendo o feretro sair do predio n. 115 da rua General Silva Tavares."
Fonte: A FEDERAÇÃO (Porto Alegre/RS), 25 de Novembro de 1891, pág. 01, col. 01