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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Crime horroroso em Carrancas


"Crime horroroso

Lynchamento

Sob este titulo refere a Gazeta Mineira, de S. João d'El-Rei, em dias de dezembro findo:

'O arraial de Carrancas, pertencente á comarca do Turvo e distante d'aqui 12 leguas apenas, acaba de ser theatro de scenas horripilantes, quaes nos descrevem a ardente e phantasia dos mais imagionosos romancistas.

Fortemente impressionados vamos narral-as pallidamente, obedecendo a informações merecedoras de conceito, que conseguimos cuidadosamente colher.

As chuvas, que cairam torrenciaes no correr de quasi toda semana que passou, haviam detido no pequeno povoado de Carrancas, até o dia 10 do corrente, a maior parte dos fazendeiros que, dos arredores e dos districtos mais proximos, ahi tinham ido com suas familias para assistir as festas celebradas em honra da Senhora da Conceição.

Na noite d'esse dia organizaram as netas do venerando sr. tenente-coronel Antonio Francisco de Souza Andrade magnifico saráo, para o qual convidaram as mais importantes e estimadas familias, que ainda se achavam no arraial.

Os salões encheram-se n'um momento, e as danças romperam alegres e animadissimas.

Terminára a segunda quadrilha; damas e cavalheiros procuravam descanço no salão do baile, ou espalhavam-se pelas dependencias do vasto predio.

D. Maria das Dores Garcia, estimada e adoravel donzella, appellidade Moça, enlaça duas de suas amigas mais intimas, entre as quaes passeia descuidosa pelo salão, na mais doce e aconchegada palestra, quando de um dos cantos parte como um raio em direcção a ellas um individuo de olhar sinistro e physionomia decomposta, o qual saca de enorme faca e vibra-a, pelas costas, sobre a que estava ao lado de dereito da Moça; ferea-a superficialmente, e rapido recua o braço para enterrar a arma homicida inteira nas costas de d. Maria das Dores, que cáe fulminada, não tendo tido tempo de, ao menos, olhar de quem partira o golpe.

Em seu odio e desvairamento o feroz assassino quasi victimou outra que seu furor não visava: a esposa do sr. Francisco de Paula Teixeira, a qual, como referimos, apenas foi tocada pela arma do miseravel.

Morta que foi a Moça, deu o assassino evidentes mostras de que procurava novas victimas; e o primeiro conviva, que pretendeu detel-o, caiu tambem gravemente ferido na região abdominal.

Com a faca alçada e gottejando sangue, tentou o monstro penetrar as dependencias internas da casas, afim de perseguir outras pessoas.

Em um corredor tentou embargar-lhe a passagem o tenente-coronel Antonio Francisco que, ameaçado de morte, teve que recuar.

Mais adiante um filho do tenente-coronel, empunhando uma tranca de janella, cercou o assassino, e, conseguindo evitar o golpe que lhe era dirigido, deu-lhe uma pancada na cabeça, atordoando o criminoso, que assim pôde ser desarmado, mas que ainda empregou grande resistencia, quando lhe applicavam cordas aos pés e ás mãos.

Toda esta scena horrivel não durou mais de tres minutos.

A indignação de todos os convivas foi tal, que ficou logo determinado queimar-se vivo o malvado, para o que lhe embeberam as roupas em kerozene.

O tenente-coronel Antonio Francisco e alguns outros obstaram tão terrivel vingança, ficando assentada levar-se, no dia seguinte, a féra para a cidade do Turvo, a cujas auctoridades seria entregue.

Durante a noite o assassino, sem mostrar o menor arrependimento, declarou que esperára, em caminho do arraial, d. Maria das Dores Garcia, com o fim de raptal-a, matando, para isso, a mãi e um irmão que com esta viajavam, e ella propria, caso recusasse acompanhal-o; que, vendo mallogrado seu plano sinistro, por terem os tres viajores tomado estrada diversa, resolvera assassinal-a no baile, e ahi matar-lhe tambem a mãi, irmãos e mais quatro pessoas extranhas á familia, sendo um d'estes o noivo da victima principal.

Disse mais que havia de evadir-se da cadêa do Turvo para vir completar sua nefanda obra, que apenas ficára em inicio, e, caso não pudesse fazel-o, já estava satisfeito, porquanto Maria das Dores não fôra sua esposa, mas não seria de outro.

Além d'isso levou o resto da noite a cantar, com voz forte e bem timbrada, diversas cançonetas brejeiras em idioma hespanhol.

Tudo isto produziu tal colera na povoação, que, ás 6 horas da manhã de 11, o scelerado foi conduzido para a praça unica do arraial, onde foi lynchado por cerca de 500 pessoas, a tiros de bala, que se lhe crivaram por todo o corpo, ficando a cabeça completamente esmigalhada.

O cadaver foi, em seguida, arrastado pelas ruas do povoado, e depois atirado a um buraco da serra em que assenta Carrancas.

Paulino, chamava-se o assassino, e era natural do Rio da Prata.

Ha dez mezes aggregou-se elle aqui á tropa do tenente-coronel Antonio Francisco de Souza Andrade, que viera trazer generos ao nosso mercado.

Chegado a Carrancas, apresentou-se ao tenente-coronel, pedindo-lhe occupação e referindo-lhe que, com mais nove companheiros, embarcára para o Rio de Janeiro, afim de ahi ganharem a vida: que, em poucos dias, a febre amarella victimou os nove, pondo-o aterrado ao ponto de internar-se em Minas, deixando na capital federal toda a roupa, passaporte, papeis, tudo emfim que possuia.

Informado de que Paulino era perito em lidar com animaes e em amansal-os com presteza e habilidade, acolheu-o o tenente-coronel Antonio Francisco, como seu empregado.

Em pouco tempo, justificou o aventureiro por tal fórma a sua competencia, que muitos outros fazendeiros começaram a utilisar-se de seus serviços profissionaes, passando elle logo a ser conhecido por Paulino Peão, denominação por aqui dada aos domadores de animaes chucros.

Ao mesmo tempo ganhava Paulino confiança e mesmo estima geral, já pela correcção de seu procedimento, já por certa civilisação que patenteava, já pelo seu genio jovial e affavel.

Ha pouco tempo atreveu-se o Argenino, como tambem o chamavam, a manifestar paixão amorosa pela Moça, chegando a solicitar-lhe a mão de esposa, que lhe foi peremptoriamente recusada.

A assassinada era filha da respeitavel viuva d. Maria Magdalena das Dôres e sobrinha dos importantes e estimados fazendeiros srs. Jeronymo, Vicente e Jorge Ribeiro das Dôres, com quem mantemos honrosas relações de amizade, e que são aqui muito bemquistos e considerados.

A desventurada donzella gosava de immensa estima pela sua extrema bondade, philantropia e austeridade de caracter.

Estava, disse-nos, contractada para casar-se com estimavel moço, o qual achava-se tambem no saráo, pertencendo ao numero dos que o scelerado pretendia anniquilar.

✤✤✤✤✤

Iamos deixando de referir o modo por que o assassino introduziu-se no salão do baile, o que vamos fazer, para assim concluir a narração d'esta tremenda tragedia de sangue.

Distraídos, como se achavam todos, com a dança da segunda quadrilha, que estava a terminar, como dissemos em principio, ninguem deu pela entrada de Paulino que, penetrando sorrateiramente no salão, dirigiu-se a um filho do tenente-coronel Antonio Francisco, moço que estava tocando na orchestra.

Reprehendido por causa de tal procedimento, pretextou Paulino que entrára para pedir-lhe uma pequena quantia de que necessitava urgentemente, e accrescentou que se retiraria immediatamente.

Recebida a quantia solicitada, o assassino, que só quizera ganhar tempo para esperar a terminação da quadrilha, desabotoou o casaco, e, fingindo movimento de quem ia depositar o dinheiro no bolso interno, sacou da faca com que investiu contra sua primeira victima, que, n'esse instante, caminhava dando-lhe as costas.

E aqui depomos a penna, dolorosamente impressionados por crime de tamanha ferocidade e pelo acto desesperado de summaria justiça que o povo, em justa colera, praticou contra o atrevido, infame e deshumano assassino."

Fonte: A FEDERAÇÃO (Porto Alegre/RS), 05 de Janeiro de 1893, pág. 01, col. 03-04