Páginas

domingo, 17 de novembro de 2019

Almas do outro mundo...


"Almas do outro mundo

Começam de novo os jornaes do Rio a noticiar o reapparecimento ali das engraçadas almas do outro mundo, que agora, parece, estão fazendo do cemiterio de S. Francisco de Paula o seu quartel general.

O Diario de Noticias assim refere-se ao facto:

'Ás 2 horas da madrugada de hontem, o sr. tenente Maceió, com praças da 13a. estação policial, marchou para os lados da rua do Itapirú, de onde se ouviam continuados apitos de soccorro.

Perto do cemiterio de S. Francisco de Paula verificou o official que os apitos partiram d'esse lugar, respondendo de continuo aos que de fóra soavam.

Por mais que se investigasse, nada se pôde colher do extranho apitar. Cercado o cemiterio, viram as praças, como por encanto, ás 3 horas da manhã, cair perto do portão central um grande embrulho, contendo uma vela de cera, de um metro de comprimento, um gallo-capão vivo, envolvido em roupas de criança, um chifre de veado, uma oração de S. Marcos e um esqueleto de gato.

A subdelegacia da freguezia do Espirito Santo abriu inquerito sobre o caso extranho.

- Nada tem podido colher, ácerca do extranho acontecimento do cemiterio de S. Francisco de Paula, o subdelegado da freguezia do Espirito Santo.

A despeito de toda a sua actividade, dos muitos interrogatorios já feitos, cousa alguma pôde adiantar ao que foi dito.

Procurámos o sr. José João da Costa, ex-empregado do cemiterio e actualmente estabelecido com armazem de seccos e molhados na rua do Engenho de Dentro, o qual nos relatou o seguinte:

'Que esteve durante muitos annos empregado n'aquella casa mortuaria, e que, apesar de incredulo em cousas de almas de outro mundo, foi forçado a acreditar que estas aproveitam a noite para andar pelas estreitas ruas do cemiterio e até acredita que d'ahi saem, voltando antes de amanhecer o dia.

Quando a alguns jornaes de ante-hontem, nos disse elle, não me espantou terem havido apitos no interior do cemiterio; mais de uma vez os escutei, tendo até certa noite podido certificar-me do lugar de onde saiam os sons.

Marcou bem; era proximo a um mausoléo de um barão; pelo menos na pedra mar norte tinha uma corôa.

Eram 2 horas da madrugada; achando-me deitado, levantei-me sobresaltado com pancadas na janella do aposento a mim destinado e a outros companheiros, do outro lado da casa do administrador.

Abri a janella levemente e vi duas praças, que rondavam as immediações, dizendo que, si não abrissem, mettiam a janella dentro.

Com a consciencia tranquilla, de quem não commette crime algum, perguntei-lhes o que desejavam, e antes que tivessem acabado de perguntar me a causa dos gritos e apitos no cemiterio, ouviram-se dois gritos mais, um após outro, como que saídos da garganta de uma mulher afflicta, e logo em seguida alguns apitos.

Corria a bater na porta do alojamento do administrador e, como este não abrisse, franqueei a entrada ás praças, que se mostravam soffregas de saber o motivo dos gritos e apitos e dispostas a bater o cemiterio. 

Lancei mão de um lampeão e, com os soldados, que haviam desembainhado as espadas, puzemo-nos a caminho.

Já estavamos desanimados das nossas investigações, quando do lugar da sepultura da corôa ouvimos um grito abafado e como que um vulto; corremos então ao ponto designado e nada vimos, parecendo-me comtudo ouvir um baruho, semelhante ao pousar de uma lage.

Olhei estupefacto para todos os lados e depois, perguntando ás praças si nada tinham percebido, responderam-me negativamente.

Fiquei indeciso si seria allucinação minha e por isso procurei esquecer o original movimento.

Nada mais nos cumpria fazer, deixando me as praças já quasi de madrugada.'

Outros successos não menos excentricos e curiosos nos contou o sr. Costa, que reservamos para depois."


Fonte: A FEDERAÇÃO (Porto Alegre/RS), 13 de Julho de 1892, pág. 02, col. 03