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domingo, 30 de junho de 2019

O Rio Grande do Sul na Idade do Couro


"Que produtos exportou, nessa 'idade do couro', o Rio Grande do Sul? A primeira notícia, que se tem, de atividade lucrativa aqui exercida, refere-se à extração e comercialização de couros. Entre os fundadores contam-se muitos coureadores, gente que se espalhava pela Campanha à caça do gado alçado. Formavam uma classe. Logo depois, vieram os cereais, plantados em pequenos lotes, denominados 'chãos', a uva (de que três anos depois já se fazia consumo no porto de Rio Grande), etc. Foi tão intensa a extração de couros, e tão desordenada, que o governador André Ribeiro Coutinho, sucessor de Silva Pais, baixou o 'Regimento da Courama', para vigorar em todo o território gaúcho a partir de junho de 1739, muito cedo, portanto. De resto, sobre tal produto recaía o imposto do quinto, de modo que interessava vivamente ao governador regular as coisas a fim de não haver desperdício de tão preciosa matéria-prima. Precioso, sim. À falta de melhor material, usava-se o couro na confecção de vários utensílios, na cobertura e como parede dos ranchos e casas, na confecção de vestimentas, nas botas, numa infinidade de outras coisas essenciais. Compreende-se, por isso, a minúcia com que Coutinho definiu obrigações, regulou o transporte, a conservação e a guarda dos couros, cominando penas aos infratores e procurando sempre adequar tudo aos interesses da Provedoria Real e bem-estar da população em germe.

Por esse Regimento, vê-se também que havia, então, matança de gado em diversos pontos do território: Estreito, Porto, Taim, Albardão, São Miguel, estâncias reais de Torotama e Bojuru e, em todos, a cobrança do imposto era de preceito. Uma vasta área, contudo, escapava à fiscalização. Aventureiros sem rei nem roque, - gente andeja, resultante do acasalamento em várias etnias, entre as quais predominava o aborígine, - percorriam livremente a Campanha, nas Vacarias do Mar, a extrair couros do gado bravo para comerciá-los no litoral, aonde acorriam comerciantes matriculados, contrabandistas e flibusteiros, interessados em levá-los para a Europa, onde obtinham bom preço. Desse meio campesino nasceu o gaúcho. Sua energia e bravura, na fase da courama e das tropeadas, consagraram-no como o expoente de uma classe inculta cuja vida girou por inteiro em torno da vida livre e da pecuária 'extrativa'. Mais tarde, no período das lutas políticas internas, como sucedeu na Guerra dos Farrapos, esse tipo marginal, a seu modo um trabalhador 'autônomo', ganharia especial relevo como guerreiro indomável.

Mas ordenar o mundo caótico da Campanha, pátria desses campeadores primitivos, abarbarados, não foi obra fácil. Ao sentar pé no Rio Grande, a administração lusa fez o possível para civilizar aquela gente, que compartilhava com os índios, Minuanos, Charruas e Tapes, o proteinato das Vacarias. É o que veremos depois.

O sistema militar defensivo, traçado por Silva Pais, compreendia o estabelecimento de guardas, nos passos, na Angustura de Castilhos, no porto de Viamão, nas cercanias do Porto do Rio Grande. A subsequente construção de fortins de campanha, associados às fortalezas do litoral e de Rio Pardo, na confluência do Jacuí, impôs respeito aos platinos e evitou a infiltração de tropas espanholas, especialmente de índios missioneiros, que, se pudessem, teriam barrado a lenta penetração portuguesa em direção ao Rio Uruguai.

A distribuição de terras a antigos militares, leais à Coroa, ou a colonos descendentes ou protegidos do pessoal integrante do estamento régio, foi, em certo momento, em especial no período da ocupação espanhola do Rio Grande (1763-1776), a medida de que se serviram os vices-reis para formar uma fronteira viva no Brasil Meridional. De fato, as sesmarias, então doadas a pessoas de posses ou de prestígio, serviram de base à implantação de estâncias, em cujos campos o gado, sob um costeio antes ignorado, prosperou grandemente. Da mera caça aos bois e aos cavalos, no campo indiviso, passava-se agora a uma nova fase, que iria abrir à estância, no seu sentido clássico de estabelecimento destinado à criação de gado, a oportunidade de centrar, constelar atividades econômicas em todas as áreas do Rio Grande do Sul.

O 'monarca dos coxilhas', o tipo clássico do gaúcho, tem aí um papel singular. Ele é que arrebanha o grosso da gadaria para os matadouros e charqueadas. Esses estabelecimentos, um tanto rudimentares, vinham da época de Silva Pais. Mas, em consequência da crescente demanda do produto e dos mesmos choques armados que ensanguentaram e empobreceram os campos uruguaios, na era artiguista, essa indústria de transição alcança por volta de 1820 extraordinário desenvolvimento. A propriedade fundiária sobe de preço. Aumenta a escravaria. Cresce a exportação."

Fonte: CÉSAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. IN: DACANAL, José Hildebrando & GONZAGA, Sergius. RS: Economia e Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, pág. 12-14.