Reportagem de Marina Wodtke
Com o mesmo desembaraço com que distribui hóstias a seus fiéis, o padre gaúcho José Ozy Alves Fogaça, de 50 anos, joga futebol, faz pronunciamentos na Câmara Municipal de Pelotas no Rio Grande do Sul, advoga com habilidade na defesa de réus, fala aos microfones da Rádio Cultura e ainda tem tempo para cair na folia e brincar no carnaval - desta vez vestido de Salomé. Esta não é a primeira vez que ele sai no mais famoso carnaval gaúcho, o da cidade de Pelotas, a 350 quilômetros de Porto Alegre. Em 1972, o padre resolveu fazer parte de um bloco burlesco, o Bafo da Onça, vestido de jogador de futebol. Ele lembra que 'o pessoal do bloco sempre ensaiou na minha paróquia, a dos bairro Augusto Simões Lopes'. E conta: 'Os ensaios eram num terreno baldio, desocupado, próximo à igreja. Naquele ano, porém, alguém resolveu fazer uma roça de milho e acabou com o carnaval. Então pedi licença para usar o salão da minha paróquia a Nossa Senhora Aparecida. Permiti porque não tinha motivo para dizer não aos meus fiéis. A partir daí, acompanhei os ensaios e, quando todos estavam prontos para enfrentar a avenida, alguém me convidou: Vamos entrar nessa, padre Ozy? Apareceu uma peruca loira, que botei na cabeça, e usei o meu velho uniforme de futebol. Saí com o bloco, pensando: Seja o que Deus Nosso Senhor quiser'.
Desse memorável carnaval em diante, padre Ozy não abandonou mais a avenida, apesar das críticas do clero local e da própria sociedade pelotense, uma das mais tradicionais e fechadas do Rio Grande do Sul. 'Sempre gostei do povo e, gostando do povo, nunca deixei de amar o carnaval, a união perfeita de todas as classes sociais, talvez uma das formas democráticas mais puras'. Um ano depois, para o aborrecimento do bispo diocesano, Dom Antônio Záttera, o padre vestiu-se de Emerson Fittipaldi e recebeu os aplausos do público que se acotovelava na Avenida Pedro Osório, onde se realiza o carnaval pelotense. Dom Záttera proibiu o Padre Fogaça de participar novamente de 'semelhantes festejos populares'. Admoestado durante dois anos, ele apenas acompanhou os festejos de longe, como presidente do Bloco Burlesco Bafo da Onça, que congrega mil dos dez mil habitantes do bairro Augusto Simões Lopes. Em 1977, voltou a desfilar na avenida fantasiado como Político dos Anos 30, numa sátira ao início da ditadura getulista e, em 78, subiu num carro alegórico ironizando a sua própria profissão, a de radialista. No ano passado, para não ser inquirido por um tribunal eclesiástico, ele preferiu uma participação mais modesta. Contentou-se em comentar para o rádio o carnaval pelotense.
Este ano, Padre Ozy resolveu rasgar a bandeira e fazer a sua cabeça e a de todos os paroquianos, saindo no carnaval com duas fantasias, a de Salomé - a personagem de Chico City - e como integrante da Comissão de Frente da Escola de Samba General Telles, já que o Bafo da Onça não desfila. Ele explica o porquê da Salomé. 'Em novembro de 76 fui eleito vereador pela Arena com 2.004 votos. O MDB elegeu o prefeito e a maioria na Câmara Municipal, 11 contra dez. Como a Salomé critica a situação, resolvi fazer a cabeça do Prefeito Irajá Andara Rodrigues, nosso João Baptista'. Fogaça, na verdade, é admirador do Presidente João Figueiredo, tanto assim que foi um dos primeiros a assegurar a sua participação no PDS.
'Não sou eu quem está com ele, é o João que está comigo'. Além de ser um dos politicos locais mais votados, o Padre Fogaça já está na mira das velhas raposas da política pelotense que não sabem se dão a ele o cargo de vice-prefeito ou o fazem deputado estadual nas próximas eleições. 'Se eu for escolher, fico como vereador mesmo. Dá mais trabalho, mas permaneço mais perto do povo'.
O tradicional estilo populista é cultivado pelo Padre Ozy Fogaça que tem, diariamente, às 10 horas, um programa de cinco minutos na Rádio Cultura de Pelotas. É o Fala o Povo, que detém o maior Ibope da cidade. 'Recebo 20 cartas por dia apoiando ou dando contra aquilo que eu falo. Isso é ótimo porque o povo me ouve e se manifesta'.
Outra maneira que o religioso descobriu para estar perto da população é como assistente jurídico da SANSA (Sociedade Assistencial Nossa Senhora Aparecida), entidade vinculada à paróquia que ele dirigia até há um ano. Foi o próprio Ozy quem criou a SANSA e, segundo as línguas mais ferinas da cidade, ele quis passar os bens da entidade para a Fundação Assistencial Doutor Padre Ozy Alves Fogaça. Dom Antônio Záttera processou-o por 'reter para usos próprios bens da diocese'. Além disso, impediu-o, em 19 de fevereiro de 1979, de rezar missa, ministrar sacramentos e declarou-o excomungado. Em agosto do ano passado, pouco depois de voltar atrás em suas decisões, Dom Antônio Záttera aposentou-se, deixando o explosivo caso do Padre Ozy (Zizi para os íntimos) nas mãos de seu sucessor, Dom Jayme Chemello, com quem Fogaça mantém boas relações.
'Atualmente a Igreja não tem nada contra mim. Estou pensando até em voltar a ter uma paróquia. Ou, talvez, em ser capelão do Presídio Central, logo após o carnaval'.
Na verdade, Padre Ozy está licenciado da Igreja. O afastamento aconteceu logo após a sua decisão de concorrer à vereança da cidade. 'Dom Antônio, na ocasião, fez um pronunciamento afirmando que nenhum religioso poderia apoiar ou candidatar-se por qualquer partido. Entendi as palavras como uma indireta para mim e pedi um afastamento provisório', afirma o pároco gaúcho. E continua: 'Completei 25 anos de sacerdócio e quero voltar a ter uma paróquia, apesar de achar melhor atuar na Câmara de Vereadores, onde falo e sou rebatido, do que no púlpito, onde falo e ninguém diz nada contra'.
Além das atividades tão variadas, como comentarista de rádio, vereador, advogado, jogador de futebol, folião, Padre Ozy também encontra tempo para cultos profanos e cultiva uma velha amizade com a umbanda. Ele é sócio-honorário do Centro Espírita e Umbandista Nossa Senhora da Conceição e não perde a festa de Iemanjá, realizada todos os anos, no dia 2 de fevereiro. 'Acredito na doutrina da Igreja Católica e no ritual de umbanda', afirma. 'Sabe, como tudo que me tem acontecido, confio na força natural dos pretos velhos', diz o padre, que anuncia jamais ter jogado búzios e não saber quem é seu guia de cabeça. Apesar disso, declara-se devoto de São Jorge.
De uma forma contraditória, no entanto, ele se diz favorável ao pensamento do temível religioso francês Lefebvre, é admirador incondicional do cardeal gaúcho D. Vicente Scherer, e bom conhecedor da doutrina de João Paulo II. Aliás, é com os atos do Papa que ele justifica os seus. 'Se João Paulo II foi à Turquia e celebrou culto numa Igreja Ortodoxa, não vejo por que eu não possa participar das cerimônias de umbanda, tão próxima a nós. E, afinal, é uma maneira que eu encontro de trazer católicos perdidos de volta ao seio da Igreja. Todos sabem que a religião católica está passando por uma crise. Os fiéis estão se afastando dos templos e todas as maneiras são válidas para atraí-los de volta'. Padre Ozy admira os cultos em latim. 'O povo gosta de coisa que não entende. É por isso que frequenta a umbanda e adora o linguajar ininteligível dos pretos-velhos. Se o latim ainda vigorasse, o mistério permaneceria e teríamos mais gente nas igreja aos domingos'.
As posições do Padre Ozy Fogaça, no entanto, além de não agradaram à Igreja, também não são bem recebidas por seus próprios colegas da Câmara de Vereadores. Logo após anunciar que sairia neste carnaval vestido de Salomé, foi seriamente advertido. Um de seus colegas, o líder emedebista (hoje PMDB) Edmundo Wendt pediu a sua cassação baseado 'na falta de decoro parlamentar' e ameaçou-o, inclusive, de linchá-lo se fosse à avenida fantasiado. 'Dei parte à polícia e estou me cuidando, afinal não tenho o corpo fechado e não sei se numa hora dessas meu São Jorge possa vir me dar proteção', revela o padre.
Os demais colegas são mais discretos em suas censuras. José Karini, ex-Arena, diz que não acha certo, mas que 'cada um sabe de sua vida'. Francisco de Paula Morais (PMDB), presidente da Cãmara, afirma que 'seria melhor o padre conter seus impulsos burlescos longe dos olhares e críticas do povão'. Diz ainda: Não acho certo ele sair com uma fantasia satírica. Ele poderia se conter e ser menos espalhafatoso'. Mas o Padre Ozy vai em frente e afirma que este ano vai mesmo é 'sair de Salomé e fazer a cabeça de todo João Batista que atravessar o meu caminho'."
Fonte: MANCHETE (RJ), 23 de Fevereiro de 1980, edição 1453, pág. 14-15