"Possivelmente em fins de abril, Mariano pediu licença a Manoel Padeiro para ir vender milho e comprar fumo e pólvora nas proximidades da vila de Pelotas. O general concedeu a permissão e enviou pai Francisco com o crioulo. A documentação sugere a fina razão da escolha. Depois de roubarem e ensacarem milho, os dois quilombolas dirigiram-se, numa viagem de nove dias (ida e volta), a uma venda em Boa Vista, nas proximidades de Pelotas, de propriedade do africano liberto Simão Vergara, conhecido pelos quilombolas como pai Simão. O africano alugava parte da casa em que morava, e outras casas de sua propriedade, para negros ganhadores.
A venda do pai Simão não seria das mais providas. Sua esposa, a preta Teresa, acompanhou pai Francisco para que comprasse sem problemas erva-doce, pimenta-do-reino, açúcar e cominhos, em outra bodega. Na venda de pai Simão, os quilombolas compravam fumo e a preciosa pólvora. Mariano declarou que as negociações entre pai Simão e pai Francisco se deram na 'língua do Congo', que ele não conhecia. O fato de os dois africanos serem chamados de pai e conhecerem o quicongo, sugere que seriam congos de nação e, talvez, da mesma idade.
Não seria muito sólida a solidariedade nacional. Pai Simão trapaceou de tal modo o conterrâneo, pouco afeito aos negócios, ao trocar a valiosa moeda que o Padeiro lhe entregara para as compras, que o general castigou com laçaços os viajantes, quando voltaram ao quilombo. Mariano, talvez por pudor, relatou apenas que pai Francisco teria sido 'xingado' pelo Padeiro. Chama a atenção o fato de que o castigo físico, como forma de punição de faltas cometidas, um dos pilares do escravismo, penetrasse tão fundo na consciência dos trabalhadores escravizados que fosse por eles adotado mesmo na liberdade do quilombo.
Depreende-se igualmente da documentação a dominância das determinações sociais sobre as raciais e étnicas na ação dos quilombolas. Era o fato de serem cativos fugidos e perseguidos que unificava o grupo formado de trabalhadores escravizados nascidos no Brasil ou na África. A ação dos quilombolas não parece ter sido regida por uma consciência racial que se sobrepusesse às contradições e às necessidades vividas pelo grupo. As crioulas e as pretas Maria, Florência e Doroteia foram notificadas pelos quilombolas que ficavam livres, ao serem obrigadas, à força, a acompanharem os atacantes. Durante o tempo que permaneceram com o grupo, foram estreitamente vigiadas pelos quilombolas.
A serra dos Tapes era uma zona de médias e pequenas propriedades dedicadas à produção de gêneros de subsistência. Grandes, médios e pequenos senhores tinham chácaras na serra. As nove casas incendiadas possuíam coberturas de palha, o que sugere, numa região onde eram abundantes as olarias, parcos recursos ou investimentos. Propriedades assaltadas, queimadas ou saqueadas pertenciam a pardos, livres ou libertos. Alguns deles eram senhores de escravos.
Os quilombolas pareciam não fazer diferença entre senhores brancos e negros. Eles arrombaram a residência e assassinaram o pardo liberto José Alves, segundo parece, pequeno proprietário. Após saquearem e incendiarem a casa, carregaram à força a filha de Alves, a mulata Senhorinha. Israel, irmão de Senhorinha, integrou o grupo armado que atacou os quilombolas, libertou as mulheres e matou João, 'Juiz de Paz', e Rosa.
A documentação registra também o ódio dos quilombolas aos capatazes, como eram chamados os feitores gaúchos. Os capatazes Domingos José Enes, português de 54 anos, e Eufrázio Antônio de Silva, foram duramente feridos e castigados pelos quilombolas. Durante o ataque da chácara de Tomás Flores, ao saberem que o capataz se encontrava na casa, os quilombolas arrombaram uma janela a machadadas e retiraram e balearam Domingos Enes, deixando-o por morto. Na ocasião, a mulata Maria, sequestrada pelos quilombolas, teria gritado que matassem o português porque 'era mau'. A consciência dos trabalhadores escravizados - fugidos ou sequestrados - se fundia diante da possibilidade de ajustar contas com um capataz talvez sobremaneira impiedoso.
Após porém a serra dos Tapes em chamas e despertarem a ira e o medo dos senhores pelotenses, em 16 de junho de 1835, como vimos, os quilombolas foram atacados por uma patrulha que caiu sobre o acampamento e apoderou-se das mulheres e do tesouro de guerra dos quilombolas. Dois fujões morreram no combate e os outros conseguiram escapar. Porém, mesmo debilitados, a seguir os quilombolas reagruparam-se e reiniciaram os ataques.
Duas semanas mais tarde, no início de julho, os seguidores de Manoel Padeiro, em número de seis a oito, atacaram à noite uma olaria, próxima de Pelotas, com o intento de libertarem 'negros' e 'negras'. No assalto, o mulato Antônio feriu gravemente o capataz do estabelecimento. Segundo parece, os fujões não conseguiram seus intentos. Na mesma noite, atacaram uma venda, no caminho da serra, onde obtiveram pão, farinha e fumo. Em 9 de julho, durante a marcha de volta à serra dos Tapes, encontraram Antônio Grande, que foi chumbeado, degolado e decapitado, segundo Mariano, por ter feito a 'partida' a 'João, Juiz de Paz'.
Entretanto, a sorte dos quilombolas estava selada. Em 12 de agosto, o juiz de paz do Terceiro Distrito participava que uma 'partida' atacara um grupo de oito quilombolas e conseguira matar Manuel Cabunda, que, como vimos, se incorporara aos quilombolas após escapar de por eles ser morto. Após este ou um outro ataque subsequente, Mariano, desgarrado dos companheiros, procurou refúgio, em 10 de setembro, na propriedade de Bernardino Rodrigues Barcelos, onde foi, três dias depois, preso à traição.
Mariano foi julgado por aqueles que ofendera, quando fugira ao trabalho e ao látego e atentara contra a vida e a propriedade senhoriais. Seu processo foi mais uma farsa da justiça escravista. Abandonado pelo senhor, Mariano foi 'defendido' por um advogado, nomeado de ofício, que nem mesmo se deu ao trabalho de recorrer contra a pena de morte votada 'unanimamente' pelos jurados. Se sua pena não foi posteriormente reformada, Simão Vergara pagou com quinze anos, seis meses e vinte dias de prisão o ato de ter vendido pólvora aos sublevados.
Segundo uma publicação pelotense, de 1928, no início da revolta Farroupilha, em 1835, teria sido entregue 'como contribuição de guerra' a quantia de 'dois contos e duzentos mil-réis', para o combate aos quilombos pelotenses. A expedição, que contou com um 'destacamento de alemães', teria sido feita sob a direção do juiz de paz Boaventura Inácio Barcellos, que teve Joaquim Luiz da Lima como 'lugar-tenente'. As duas principais concentrações de cativos fugidos se encontrariam 'sobre margens de dois arroios de cursos encobertos por densa mataria, afluentes, um do Pelotas outro do Arroio Grande. Não sabemos se esse quilombo era formado por remanescentes do bando de Manoel Padeiro.
Com a revolução Farroupilha, as fugas de escravos multiplicaram-se. Os farroupilhas assaltavam as fazendas dos inimigos e libertavam os cativos que aceitassem lutar como soldados. Os soldados do Império faziam o mesmo nas propriedades farroupilhas. Nas duas fileiras, senhores convocados libertavam trabalhadores escravizados para que os substituíssem na frente de batalha. Um bom número de escravizados procurou um refúgio mais seguro do que as fileiras dos exércitos em luta. A fuga para os países vizinhos e o refúgio em quilombos atraíram um número incerto de escapados. Com a pacificação, temos notícias de várias expedições contra quilombos formados durante o decênio revolucionário. A documentação sobre o período farroupilha foi em parte perdida ou é bastante incompleta."
Fonte: MAESTRI, Mário. Pampa negro: quilombos no Rio Grande do Sul. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 353-355.