Fonte: PESAVENTO, Sandra Jatahy. A Revolução Federalista. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 84-91.
"Durante a Monarquia, vigorava um esquema de bipartidarismo, no qual liberais e conservadores se alternavam no poder. Com a República, subiram no Rio Grande os republicanos, que passaram a perseguir o objetivo de manter afastada do poder político aquela parcela da classe dominante que fora derrubada.
Tanto no período que decorreu entre a ascensão de Castilhos como governante constitucional do Rio Grande, em 1891, até a sua queda, no final do ano, quanto no decorrer do 'governicho', começaram a registrar-se atos de violência e arbitrariedades no estado.
Por um lado, deve-se ter em conta que a sociedade sulina sempre conviveu com a violência, desde o seu período formativo, marcado pelas guerras contínuas com o castelhano pela posse da terra e do gado. Todavia, em nenhum período de sua história se registraram atos tão bárbaros, com requintes de crueldade, como neste período da história gaúcha. O Rio Grande experimentou a fase de maior radicalização política já vivida pela região.
Dependendo das fontes de consulta, as arbitrariedades e matanças começaram deste ou daquele lado.
É bem verdade que, quando os castilhistas subiram ao poder, 'varreram' os liberais dos seus cargos e os perseguiram; por sua vez, quando do 'governicho', foi a vez dos republicanos serem perseguidos, registrando-se assassinatos em revide aos crimes praticados pelo PRR [nota nossa: Partido Republicano Rio-Grandense].
Com o retorno dos republicanos ao poder, abriu-se um novo período de violências e perseguições, que mais fizeram recrudescer a radicalização política.
Enquanto o PRR reorganizava a Guarda Civil, transformando-a em Brigada Militar e aumentando a dotação orçamentária estadual para os aparatos da repressão, os federalistas, no exílio, armavam-se e preparavam-se para a invasão. Esta tarefa lhes era facilitada, tendo em vista que muitos possuíam propriedades no Uruguai.
Alguns incidentes isolados registraram-se no decorrer do segundo semestre de 1892. Tentativas de aproximar os dois líderes para evitar o enfrentamento fracassaram.
Os republicanos continuaram a sua perseguição sistemática aos federalistas, obrigando-os a uma emigração maciça para além da fronteira. Estes, por sua vez, viam na guerra civil a única forma de inverter a situação política do estado, uma vez que o apoio de Floriano a Castilhos não lhes dava esperança de uma intervenção federal em seu favor.
A 2 de fevereiro de 1893, deu-se a primeira invasão, quando os revoltosos, vindos do Uruguai, pretenderam tomar a cidade de Bagé. Começava a Revolução Federalista.
As tropas federalistas eram constituídas, basicamente, dos estancieiros da Campanha com seus homens, na maioria civis, ex-liberais e ocupantes de postos e/ou cargos políticos municipais no período imperial. Sendo comandantes da antiga Guarda Nacional, recebiam o título de coronéis, sem terem, contudo, outra formação militar do que aquela adquirida nas guerras de fronteira com os platinos. Desde o ponto de vista militar, as tropas rebeldes lutavam com precariedade de recursos, se comparadas com os republicanos. Afeitos às lides do campo e ao uso da montaria, seus piquetes eram dotados de grande mobilidade e atacavam de surpresa, a cavalo, portando lanças.
Desde o início, os federalistas receberam de seus adversários a alcunha de 'maragatos'. A atribuição do nome tem diferentes interpretações. A mais aceita atribui esta designação ao fato de os revoltosos contarem em seus efetivos com muitos elementos oriundos de uma província uruguaia que fora povoada por espanhóis vindos de Maragateria. Ao atribuir esta designação aos federalistas, os castilhistas tentaram depreciá-los, dando-lhes a conotação de 'invasores estrangeiros' do Rio Grande. Os federalistas, contudo, adotaram a designação, que, ao lado do lenço vermelho, se tornou o seu distintivo corrente.
Pelo seu lado, atribuíram aos republicanos a alcunha de 'pica-paus', em alusão ao uniforme das tropas do Exército que lutaram no estado em auxílio a Castilhos e que constava de roupa azul e quepe vermelho.
Diferentes no seu ideário e proposta política, os dois blocos partidários rivais agora também distinguiam-se na designação popular e no símbolo visual: 'maragatos' eram os do lenço vermelho, 'pica-paus' eram os do lenço branco.
Uma vez desencadeada a Revolução, os 'pica-paus' contaram não apenas com o apoio integral do Exército federal, posto à disposição do governo gaúcho por Floriano, como também do governo paulista, que passou a dar auxílio material para a causa endossada pelo presidente do país.
É sintomática, no caso, a união daqueles grupos mais interessados na preservação da República, notadamente daquele que seria o mais beneficiado com a consolidação do regime.
As forças republicanas também contavam, tal como as federalistas, com o recurso das tropas fornecidas pelos coronéis com seus homens. Alguns deles, como Pinheiro Machado, arcavam com o sustento material de armas e roupas de seus efetivos.
De um lado e de outro, figuravam nomes dos principais clãs rio-grandenses e elementos de destaque na política local.
Os federalistas, tendo como comandante supremo o general 'Joca Tavares' e como líder político Gaspar Silveira Martins, tiveram ainda nas suas hostes o destacado general maragato Gumercindo Saraiva. Típico gaúcho da fronteira, estancieiro abastado, com ligações econômicas e políticas no Uruguai, notabilizou-se nas campanhas militares contra os 'pica-paus', atuando com extrema mobilidade em ataques-relâmpago.
Do lado dos 'pica-paus', destacavam-se os generais Pinheiro Machado, Manoel Nascimento Vargas, Firmino de Paula e João Francisco Pereira de Souza.
Os atos de violência e barbárie, que já vinham se registrando desde antes do deflagrar da Revolução, após a invasão de fevereiro de 1893 atingiram uma escala nunca vista até então.
Como já se disse, os cronistas da época são extremamente tendenciosos, porque partidários de uma ou outra facção.
O certo é que de ambos generalizou-se a prática da 'degola', forma de execução rápida e barata, uma vez que não requeria o emprego de arma de fogo. Consistia, na sua maneira mais usual, em matar a vítima tal como se procedia com os carneiros: o indivíduo era coagido a, de mãos atadas nas costas, ajoelhar-se. Seu executor, puxando sua cabeça para trás, pelos cabelos, rasgava sua garganta, de orelha à orelha, seccionando as carótidas, com um rápido golpe de faca.
Uma vez desencadeada a violência, a barbárie se deu num crescendo. A cada piquete aprisionado e degolado, o adversário vingava-se com uma atrocidade maior.
Ainda hoje, no Rio Grande, uma expressão popular lembra esta prática sanguinária. Quando se quer significar que uma coisa não vale a pena, diz-se 'isso é gastar pólvora em chimango!'. Chimango, no caso, foi a alcunha que os republicanos receberam na época de Borges de Medeiros, sucessor de Júlio de Castilhos no governo do Rio Grande. Quanto ao 'gastar pólvora', significa - na concepção de um maragato - que, para dar cabo de um republicano, não valia a pena gastar um tiro; vai na faca mesmo, que é mais simples e barato...
No decorrer dos combates de 1893, os maragatos contavam com o recurso de homens, armas e cavalos do Uruguai. Da mesma forma, os republicanos contratavam também soldados: mercenários do outro lado da fronteira para engrossar suas hostes. Quando da prisão de um piquete, para identificar dentre os cativos quais eram os uruguaios, era pedido que pronunciassem a letra J ou a palavra 'pauzinho', ambas difíceis de serem ditas corretamente pelos platinos. Uma resposta imperfeita significava a degola instantânea.
Talvez os incidentes que se tornaram mais tristemente famosos pelos atos de terror foram os do Rio Negro e Boi Preto. No combate de Rio Negro, próximo a Bagé, o chefe maragato Joca Tavares, vencendo os castilhistas e as tropas federais que os auxiliavam, mandou degolar mais de 300 homens jogando os cadáveres nos rios. Como represália, o chefe republicano Firmino de Paula, na batalha do Boi Preto, ordenou a degola de aproximadamente o mesmo número de federalistas. O mesmo Firmino de Paula, após a morte de Gumercindo, mandou desenterrar seu cadáver e degolá-lo.
Os mandantes de tais degolas - e de outros crimes usuais da época, como estupros, castrações, ou dos saques e incêndios de propriedades eram os chefes políticos, exacerbados no calor da guerra pela radicalização política extrema a que chegara o estado. Entretanto, os executores de todos estes atos eram membros da massa rural empobrecida.
Peões de estância, 'crias' de fazenda, agregados dos senhores de terra, marginais do campo, despossuídos: foi toda uma massa coagida a lutar por interesses completamente alheios. Acostumados a obedecer, a viver na dependência de coronéis, sem opção de vida, sem terra, sem recursos, brutalizados, a população anônima dos campos executou atos cruéis e habituou-se ao crime.
Muitos deles tornaram-se matadores profissionais, hábeis degoladores, requisitados pelos chefes políticos em função dos serviços que podiam prestar.
Se, entre os membros da oligarquia, destacou-se como mandante de inúmeros atos de violência o coronel castilhista João Francisco (alcunhado 'degolador do Cati', local onde morava), a história guardou também o nome de um certo Adão Latorre, mulato que prestava seus hábeis serviços de degola para os maragatos."