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terça-feira, 19 de setembro de 2017

O contrabando no Rio Grande do Sul no século XIX - O contrabando de guerra


Fonte: FLORES, Mariana Flores da Cunha Thompson. Crimes de fronteira: a criminalidade na fronteira meridional do Brasil (1845-1889). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014, p. 147-153. (Coleção e-book ANPUH-RS)

"Uma das questões mais problemáticas da falta de pesquisas específicas sobre contrabando e a abundância de referências superficiais - como se tratasse de algo dado, de domínio público, sobre o qual se pode inferir amplamente e, por isso, dispensar pesquisas aprofundadas - está em pensar na existência de 'o contrabando' como um bloco homogêneo. Como se o contrabando realizado desde o período colonial até o final do século XIX tivesse sido uma prática imutável.

Seria inviável pensar que os diferentes contextos não exerceriam influência a fim de modificar a forma, os caminhos, os produtos e os agentes do comércio ilícito. O trabalho de Tiago Luís Gil sobre o contrabando na Província do Rio Grande do Sul no período colonial demonstra várias características que eram próprias daquele momento e que de maneira nenhuma podem ser simplesmente transpostas para servir de modelo de análise para outros contextos.

A primeira que se destaca é em relação aos produtos contrabandeados: as mulas e os couros. Esses eram os produtos que majoritariamente movimentavam as redes ilícitas de comércio, seguidos pelo gado bovino e equino, no período abordado por Gil. Avançando no século XIX, percebe-se que o que movimenta em geral as redes de contrabando são os produtos manufaturados fabricados na Europa. Essa diferença de produto demanda estratégias diferentes das anteriores, além de apontar uma alteração dos envolvidos com o contrabando. Se, no período colonial, encontravam-se no topo da cadeia de interesses, eminentemente, estancieiros engajados no comércio ilícito, no período imperial, os grandes articuladores serão comerciantes de profissão que também poderiam possuir terras e outras inserções econômicas.

Outra diferença marcante entre as duas épocas está na legislação, na medida em que as Ordenações Filipinas, vigentes no período colonial, faziam distinção entre a importação ou exportação de mercadorias permitidas que não pagaram as devidas taxas alfandegárias. A primeira era considerada o 'contrabando' propriamente dito, e a segunda era chamada de 'descaminho'. Por exemplo, a importação ou exportação de mulas no período colonial era proibida, não havendo meios, portanto, de fazê-la a não ser por contrabando. Já no período imperial, desde o Código Criminal de 1830, não há essa diferenciação, existindo apenas a categoria criminal de contrabando, que está reputado pelo artigo 177, no Título IV: 'Dos crimes contra o thesouro publico e propriedade publica', Capítulo III da seguinte forma: 'Importar ou exportar gêneros ou mercadorias prohibidas, ou não pagar os direitos dos que são permittidos, na sua importação ou exportação'.

O diferente contexto político e social do período colonial - quando se viam as fronteiras como espaços de conquista e expansão permanente e quando as questões nacionais não tinham o peso que o século XIX irá lhes atribuir - decerto incidiu na percepção que aqueles contemporâneos tinham do comércio ilícito. Nesse sentido, Tiago Gil afirma que os contrabandistas do século XVIII, embora tivessem noção da ilegalidade de seu 'ofício', dispunham de várias maneiras legais de interpretar seu negócio usufruindo de amplos meios para legitimar sua ação, havendo inclusive pareceres oficiais favoráveis à legalização do contrabando, como o caso do letrado Antero José Ferreira de Brito, que fazia uma defesa aberta a tal prática. Baseado em justificativas pautadas na legislação, advogava que o contrabando de mulas não poderia ser considerado crime a rigor.

Da mesma forma, para o contexto colonial hispano-americano no Prata, Zacarias Moutokias refere que aquele contrabando nada tinha de clandestino, mas que os comerciantes se utilizavam das contradições existentes na legislação, considerando que se tratava de um contexto legislativo em que o particular se sobrepunha ao geral, para legitimar sua prática. Consequentemente, aquilo que faziam não devia ser considerado necessariamente uma transgressão.

É possível que essa percepção menos carregada de conotação criminal esteja relacionada à afirmação que Tiago Gil refere a respeito de que os contrabandistas contavam, em boa medida, com a proteção e tolerância das autoridades, como concessões que a Coroa fazia aos bandos armados que empreendiam o contrabando em troca da guarnição de seus territórios.

De outra parte, no contexto imperial com o qual trabalhamos, embora apareçam com frequência casos em que autoridades estão envolvidas com as práticas de contrabando, de forma alguma podemos pensar nesses envolvimentos como 'políticas de Estado'. O contrabando era amplamente condenado pelo poder central, que tentava combatê-lo, embora falhasse muitas vezes nessa empreitada por serem imponderáveis as alianças que os indivíduos enviados pela burocracia de estado estabeleciam com as redes de poder locais na fronteira.

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Em 1848, uma grave seca atingiu a fronteira oeste do Rio Grande do Sul e se fez sentir na baixa do leito dos rios que serviam para navegação comercial. O inspetor Estanislau José de Freitas, inspetor da Alfândega em 1848, afirmou 'que o Rio com a seca fez paralisar tanto a importação como a exportação'. Por outro lado, a autora Lília Medrano assinala que, geralmente, entre abril e novembro, o Rio Uruguai tinha seu período de cheia, o que aumentava o volume do comércio, já que a produção do Alto Uruguai vinculava-se a essa rota vinda do Rio da Prata. Além disso, quando havia enchente, cerca de 40 dias por ano, o rio possibilitava a passagem de grandes embarcações de 40 a 60 toneladas (quando o comum eram as de até 14 toneladas), incrementando sensivelmente o comércio nesse período.

Da mesma forma, em 1872, o porto de Montevidéu se fechou para os navios de procedência brasileira devido a uma epidemia de febre amarela. Segundo o cônsul do Brasil em Montevidéu, tratava-se de uma medida exagerada que escondia interesses políticos, já que queria ressaltar a insalubridade do Brasil para desviar as levas de imigrantes europeus que chegavam naquele momento. De qualquer maneira, independentemente dos reais motivos, ocorreu que 'essa medida se refletiu de maneira sensível nos portos das margens dos rios Paraná e Uruguai, tendo também despertado a indignação da praça mercantil de Montevidéu.

Sem a pretensão de esgotar todas as conjunturas que puderam de alguma maneira ter influenciado na dinâmica do contrabando, apontaremos alguns eventos que claramente demonstram conexões com a alteração do comércio, lícito ou ilícito, e que evidenciam a necessidade de, sobretudo em um espaço de fronteira, localizar os contextos em que determinadas ocorrências se dão.

Nesse sentido, os contextos declarados de guerra são muito significativos, já que perpassam boa parte do século XIX. Na obra citada de Guilhermino Cesar, o autor refere claramente a existência do 'contrabando de guerra' quando a prática visava à manutenção das tropas e ao prejuízo do poder de guerra do inimigo. (...)

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Das 45 evidências de passagem de contrabando entre 1845 e 1889 de que se dispõe, cinco delas ocorreram em períodos de guerras declaradas: uma em 1845, enquanto a Revolução Farroupilha ainda estava em curso, uma em 1852, quando a campanha imperial contra Rosas não havia sido concluída, e três ao longo da Guerra do Paraguai, respectivamente nos anos de 1864, 1865 e 1867. O interessante, no entanto, é que nenhuma apresenta indício de 'contrabando de guerra', ou seja, não têm conexão com a guerra que ocorre paralelamente e, da mesma forma paralela, evidenciam que se mantinham em funcionamento as redes estabelecidas de comércio lícito e ilícito que davam conta do abastecimento cotidiano das comunidades.

A apreensão de 1845 é de um contrabando de 840 reses, do qual não foi possível descobrir o responsável, e que, segundo o ofício do coletor Antonio Caetano Damázio ao Barão de Caxias, era um tipo de ocorrência frequente que necessitava de medidas enérgicas em relação aos responsáveis a fim de que servissem de exemplo para os demais e fosse possível colocar fim a tal prática. Os contrabandos apreendidos em 1852, 1864 e 1865 são de fazendas introduzidas na província; e o de 1867 corresponde a um carregamento de erva-mate que estava sendo levado para o Estado Oriental.

Inusitadamente, os únicos efeitos produzidos pelos contextos de guerra na prática cotidiana do contrabando foram encontrados no processo mencionado de 1864, embora a implicação não tenha sido na prática em si, mas no andamento do processo; e em outro processo de 1871, não contemplado nos períodos de guerras explícitas, mas inserido no contexto já referido de conflito permanente entre blancos e colorados no Estado Oriental.

Na madrugada de 27 de novembro de 1864, a grande apreensão de contrabando feita nas mercadorias dos irmãos João e José Comas deu início ao processo mais longo de contrabando de que dispomos, tendo sido julgado em última instância pelo Tribunal de Relação em 1879. No decorrer desse período, entre sentenças e apelações, o processo foi suspenso em função da invasão das tropas paraguaias em Uruguaiana em 5 de agosto de 1865. Com a tomada da cidade, todo e qualquer procedimento burocrático ficou interrompido, assim como os demais processos que também corriam naquele momento. No caso dessa apreensão de contrabando, as investigações foram comprometidas porque, segundo o ofício do escrivão Joaquim C. de Siqueira ao juiz suplente Florentino José de Abreu, não foram executadas a inquirição da testemunha Manoel Fermiano do Prado, marine da alfândega, nem as prisões de Maneco Farrapo e Florêncio. Além disso, os indiciados Modesto Oliveira e Manoel Alegre, que já se encontravam presos, foram soltos durante a invasão, bem como os demais presos.

No que se refere a 'contrabando de guerra', portanto, o único caso encontrado foi o de uma apreensão de armamentos e outros artigos de guerra, feita na casa de Joaquina Baptista, agregada de Joaquim Soares Trindade, em 1871. Pelo que se depreende das diferentes versões apresentadas, as armas haviam sido depositadas ali a pedido do Coronel Fideles, membro do partido colorado, em demonstração clara de colaboração política através da fronteira. Contudo, como o esconderijo acabou sendo descoberto pelas forças blancas, que invadiram e cercaram a casa, a movimentação chamou a atenção do coronel José Ferreira da Silva Júnior, comandante da fronteira de Quaraí e Livramento, que tomou conhecimento do contrabando e reportou ao juiz municipal João da Cunha Pereira Beltrão, para que tomasse as medidas cabíveis. Os réus acabaram absolvidos pelo mesmo juiz por falta de provas."