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domingo, 19 de junho de 2016

A Origem do Churrasco Gaúcho

Nem toda carne assada é churrasco

“Diz-me o que comes e te direi quem és”. Quando se trata de cozinhas particulares, a famosa frase do escritor e gastrônomo francês Brillat-Savarin ganha uma versão alternativa: “Diz-me o que comes e te direi de onde vens”. Alimentos, temperos e modos de preparo costumam ser fortes referenciais associados à população de um determinado lugar, seja pelos hábitos cotidianos, ou pelos pratos que acabam se tornando emblemáticos da região – a chamada “cozinha típica”. 

O “churrasco à gaúcha” é um caso particularmente interessante. No Rio Grande do Sul, ele é visto como a especialidade local, o prato por excelência da região. Associado à figura do gaúcho, é também uma manifestação eloquente daquela sociedade. 
A comida típica ou emblemática não precisa ser a do cotidiano. Ao contrário, é muito comum que seja aquela servida em dias especiais, a que necessita de um preparo paciente e trabalhoso. Para entrar no dia a dia, o prato típico ganha uma versão simplificada. 
O churrasco nasceu na região do pampa, nos primórdios da ocupação do atual Rio Grande do Sul, nos séculos XVII e XVIII. Era uma terra de conflitos, onde se chocavam os planos expansionistas de duas coroas europeias, Portugal e Espanha, e que envolviam a espoliação e a dizimação dos indígenas que ali habitavam. Na América não havia gado bovino, salvo o bisão americano, e também não se criavam ovelhas, porcos ou cavalos. Foram os europeus colonizadores que trouxeram os primeiros animais, e coube aos jesuítas a introdução dos bovinos no atual território gaúcho. Surgiram assim as Vacarias, reservas de gado para abastecimento alimentar das aldeias planejadas pelos padres da Companhia de Jesus.
Com a dispersão das chamadas reduções jesuíticas pelos bandeirantes paulistas, o gado encontrou condições favoráveis para espalhar-se por grandes pastagens, reproduzindo-se a ponto de surgirem enormes rebanhos selvagens – o gado “xucro” ou “chimarrão”. Aos poucos, esta grande reserva foi ficando conhecida, em particular depois que os portugueses fundaram a Colônia de Sacramento na foz do rio da Prata. E acabou atraindo atenção para a região. 
O território era então percorrido por diferentes indivíduos e grupos: portugueses instalados em Sacramento, espanhóis de Buenos Aires, indígenas a mando dos jesuítas e até, ou principalmente, sujeitos que vagavam e vaqueavam por conta própria – eram os primeiros gaudérios, ou gaúchos. Eles também tinham as mais diversas procedências. Eram mestiços frutos do estupro de índias e da destruição de aldeias, ex-soldados portugueses e espanhóis, gente sem lugar ou trabalho nos povoamentos estabelecidos e aventureiros, “sem lei, sem fé, sem rei”. O nome gaúcho chegou a ser usado, nos primeiros tempos, como sinônimo de bandido.

O que interessava era o couro, obtido por meio da chamada “Preia de Gado Alçado”, a caça ao gado selvagem. Depois de abatido o animal, o couro e o sebo eram retirados para comercialização e a carne era consumida no local. O restante da carcaça ficava por ali mesmo, apodrecendo. A forma mais comum e fácil para consumo dessa carne era assá-la em fogo feito no campo, cortada em pedaços e colocada em espetos de galhos de árvore, sobre brasas ou perto das chamas. Comia-se com as mãos, com o auxílio de uma faca, muitas vezes sem sal ou usando as cinzas como tempero. Em breves linhas, este é o surgimento do churrasco gaúcho e brasileiro, que em sua forma básica permanece o mesmo até hoje.
No início do século XIX, Auguste de Saint-Hilaire observou os “hábitos carnívoros” dos habitantes da região, onde a carne de gado bovino representava o essencial da alimentação e era de tal forma abundante que muitas vezes era dada, e não vendida. Apesar de não utilizar a palavra churrasco, o francês escreveu que, por onde andou, viu a carne ser preparada na brasa, em geral acompanhada apenas por farinha de mandioca. 
O prato que ficaria diretamente associado aos habitantes da região nem sempre gozou de prestígio. Visto como algo rústico e grosseiro, não fazia parte das festividades oficiais até 1935, quando foi realizada a Exposição do Centenário Farroupilha. Na ocasião, o governador Flores da Cunha pediu que fosse preparada uma carne assada à moda gaúcha. Criou-se, então, um espaço para que os visitantes fossem servidos, o que acabou sendo o embrião da primeira churrascaria conhecida: a Santo Antonio, que existe até hoje. 
A prática mais significativa para as relações sociais, no entanto, é o churrasco feito em casa, que ganhou popularidade especialmente depois da Segunda Guerra. Existe até um verbo específico para isso: “churrasquear” é não apenas comer o churrasco, mas partilhar de um momento festivo de convívio social, fora do cotidiano do trabalho e das refeições apressadas. “Fazer um churrasco” é muito mais do que assar a carne. Significa envolver-se em toda a preparação do evento, junto a familiares, colegas ou amigos – desde a produção prévia e divisão dos custos e tarefas de cada um até a hora de comer em si. A quantidade deve ser farta, e é até bom que sobre carne, o que simboliza abundância. Oferecer um churrasco implica, inclusive para os mais pobres, mostrar prosperidade e estabelecer uma distinção social. O evento é reservado para ocasiões especiais, momentos de reencontro e de convivência entre participantes de um grupo, que reforçam os laços pela partilha da comida. 
Uma figura tem papel de destaque no churrasco: é o assador, aquele que em geral se encarrega de tudo o que concerne à carne (e somente a ela), desde a escolha dos pedaços até a limpeza dos espetos. O assador costuma ser homem (raras são as assadoras), o que pode estar relacionado aos códigos nos quais a carne vermelha seria um símbolo de virilidade, em oposição aos doces, mais associados às mulheres e às crianças. Por outro lado, ao colocar no centro da cozinha um papel masculino, o churrasco inverte a tradição que atribui às mulheres as tarefas culinárias. 
O assado deve ficar crocante na superfície e suculento no interior. É difícil conseguir este ponto e, por isso, a técnica do assador é fundamental. Um assado preparado no forno perde seus sucos, mas eles ainda ficam retidos na assadeira e servem para acompanhar a carne. No caso do assado feito no espeto, o suco precisa ficar retido no interior da carne, até porque num churrasco não pode haver outro molho além de seu próprio suco. Trata-se, portanto, de receita simples, mas que exige esmero técnico – o que faz de um bom assador alguém com prestígio local e sempre requisitado. 
Existem lugares públicos para fazer churrasco nos parques do Rio Grande do Sul, enquanto nas residências é comum haver um local especial para a churrasqueira, no fundo do pátio ou num canto da garagem. Nos prédios há churrasqueiras coletivas geridas pelo condomínio, e há alguns anos surgiu na região uma forma híbrida no mercado: apartamentos que possuem sacadas com churrasqueiras, geralmente acopladas à sala. 
Em qualquer domingo do ano e em qualquer cidade do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina, espalha-se no ar um reconhecível cheiro de carne sendo assada, da gordura pingando nas brasas, da fumaça. É algo tão comum que os moradores nem sempre se dão conta, assim como não nos lembramos a toda hora da nossa própria identidade.
Maria Eunice Maciel - professora de antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do artigo “Churrasco à Gaúcha” (Horizontes Antropológicos, 1996).