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quarta-feira, 11 de maio de 2016

O mito do imigrante alemão


Interessante artigo que ora reproduzimos com o propósito de debater a questão da imigração alemã e a imagem que se tem sobre o imigrante alemão historicamente no Brasil.

Trecho extraído de: SCHULZE, Frederik. À procura de um fantasma. Revista de História da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro/RJ, Sociedade dos Amigos da Biblioteca Nacional, ano IX, n. 102, março 2014, p. 19-23

À procura de um fantasma

Os alemães constituem o quarto maior grupo de imigrantes a desembarcar no Brasil nos séculos XIX e XX, com um total estimado em 200 mil pessoas. É uma estatística impressionante, mas ela mascara uma realidade bem diversa. Nem todo “alemão” era alemão.
Longe de comporem um mesmo povo, esses imigrantes vinham das mais distintas regiões da Europa central, como Hunsrück, Pomerânia, Westfália e Württemberg. Em cada região viviam segundo uma cultura própria e falavam um dialeto específico. Muitos não sabiam nem mesmo falar o alemão formal (hochdeutsch) e não possuíam cidadania alemã – o que, aliás, só viria a existir em 1871, ano da fundação do Império Alemão. Antes disso, esses indivíduos eram cidadãos de Estados como Prússia e Baviera. Para além de toda essa diversidade germânica, até mesmo suíços e austríacos acabaram incluídos na categoria de “imigrante alemão” pelo simples fato de falarem a língua.
Para compreender os caminhos da colonização “alemã” no Brasil, é preciso reconhecer essa diversidade. Há várias respostas diferentes para as perguntas essenciais: quando, por quê, de onde e para onde emigraram?
No século XIX, a Europa foi um continente de emigração. O principal destino eram os Estados Unidos, para onde se transferiram milhões de pessoas de língua alemã. Mas também no sul do Brasil eles formaram uma população bem grande.
A maneira como os imigrantes se estabeleceram dependeu da região de destino. Eles foram principalmente para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, mas também chegaram em número considerável ao Espírito Santo e ao Paraná. Em sua maioria, eram agricultores e artesãos, nos anos 1920 também obreiros. Em São Paulo, implantou-se o modelo de parceria: na verdade, arrendamentos que acarretavam aos colonos, na maioria da Prússia, da Baviera e da Suíça, dívidas impagáveis.
Nem todos iam para o campo, porém. Houve uma elite urbana que se estabeleceu nas grandes cidades, como Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. Eram comerciantes e homens de negócios – e com o passar do tempo, também pastores, professores e diplomatas. Sua mobilidade era maior: alguns não criavam raízes no país, retornando depois de alguns anos para a Europa, enquanto muitos outros se adaptaram à vida social e econômica, fundando casas comerciais, bancos e fábricas.
Existia uma contradição entre os grupos de imigrantes oriundos da cidade e do campo. Enquanto a elite se interessava pela criação de uma cultura homogêna alemã e pela preservação da língua e dos dialetos alemães, fundando escolas, igrejas, jornais e associações, as camadas camponesas se aculturaram na sociedade brasileira sem pensar nesses assuntos. Foram as elites que deram origem a uma nova identidade “teuto-brasileira” que, por um lado, mantinha contatos com a Alemanha e, por outro, participava ativamente da vida social e política do Brasil. Dividiam-se principalmente entre liberais e conservadores – e depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com o maior influxo de trabalhadores, houve também a influência de grupos anarquistas e socialistas.
Além das diferenças sociais, também foram múltiplas as razões que levaram milhares de “alemães” a abandonarem seu continente. Motivos econômicos foram decisivos. As camadas mais pobres sofriam os efeitos da superpopulação, péssimas perspectivas de emprego, más colheitas e a fome. Mas também havia relevantes motivações políticas. Depois da fracassada revolução de 1848, que tentou unificar a Alemanha, muitos revolucionários desiludidos deixaram os Estados que compunham a Confederação Germânica e, nos anos 1930, refugiados do nazismo, como judeus, chegaram ao Brasil.
Até os anos 1860 o governo imperial brasileiro ofereceu subsídios e terras para novos colonos, além de pagar as passagens. Normalmente não havia obstáculos para que os imigrantes recebessem a cidadania brasileira. O direito de candidatura a postos políticos foi concedido aos imigrantes em 1880 e, em 1889, com o advento da República, houve a naturalização de todos os estrangeiros no país.
O apoio para a emigração vinha também de sociedades privadas alemãs, e muitos germânicos escolheram o Brasil por já terem família no país. Porém, os Estados germânicos tentavam impedir a saída de seus súditos, pois a enxergavam como perda populacional. Entre 1859 e 1897, por exemplo, a Prússia proibiu recrutar emigrantes para o Brasil por causa de denúncias de abuso no sistema de “parceria”.
Ondas de emigração ocorreram nos anos 1820, 1850, 1880 e 1890. A última leva significativa chegaria nos anos 1920, em virtude da crise econômica na República de Weimar, como consequência da derrota na Primeira Guerra Mundial. Houve vários conflitos entre os imigrantes que para aqui vieram no século XIX e os recém-emigrados, conhecidos como Deutschländer. Quem já morava há gerações no Brasil não tinha muito em comum com os alemães que acabavam de chegar.
No campo religioso, mais diversidade. Pouco mais da metade era protestante, o restante era católico. No Império brasileiro, os protestantes não contavam com os mesmos direitos que os católicos e eram obrigados, por exemplo, a lutar pelo reconhecimento legal dos seus matrimônios.
Os caminhos de vida dos imigrantes na sociedade brasileira construíram diferentes histórias de adaptação e de influência de suas culturas regionais “alemãs” no país. Surgiram formas culturais híbridas. O “café colonial”, que é conhecido como comida típica alemã no sul do Brasil, por exemplo, não existe desta forma na Alemanha.
Se eram grupos tão heterogêneos e se sequer tinham a mesma cidadania ou falavam um alemão padronizado, por que ainda tratamos a “imigração alemã” como uma categoria geral? A confusão foi arquitetada na época. Sociedades e políticos alemães promoviam a colonização baseando-se em princípios nacionalistas, partindo da ideia de um “povo alemão” como substituto da nação territorial, pois antes de 1871 ainda não existia um Estado alemão. De acordo com essa lógica, o pertencimento ao povo alemão era resultado de ascendência, língua e tradições comuns. Mesmo que esses elementos não estivessem presentes em todos os grupos, os nacionalistas consideravam os imigrantes como “alemães no exterior”. Através dos imigrantes, essas sociedades pretendiam intensificar a influência alemã no mundo e explorar novos mercados.
Políticos e intelectuais brasileiros também tratavam por “alemães” os imigrantes. Esta perspectiva, por um lado, construiu uma imagem homogênea e positiva do “alemão”, porque os percebia como trabalhadores que “civilizariam” o Brasil. Por outro lado, os “alemães” eram vistos como um problema, acusados de resistir à assimilação no país. A imigração nunca seria um processo sem conflitos, como mostram as campanhas de nacionalização na Primeira Guerra Mundial ou sob o governo de Vargas (1930-1945), que restringiu o uso da língua alemã no Brasil.
No meio desse hibridismo cultural, no jogo criativo de aculturação de imigrantes com várias identidades, um agricultor católico “alemão” tinha mais em comum com seu vizinho “italiano” do que com um comerciante urbano “alemão” e protestante que, por sua vez, teria mais afinidade com um homem de negócios britânico.