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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Futebol de Botas

Trecho extraído de: PINHEIRO, Luiz Carlos Marques. A Pelotas que vivi. Edição independente, 2013, p. 194-196.


"Sobre o meu tio Damásio eu já contei. Era um engenheiro-agrônomo, Administrador da Fazenda Experimental da Palma, uma fazenda-modelo, integrada ao Instituto Agronômico do Sul. 
A fazenda podia ser chamada com muita propriedade de “modelo”. Seu antigo proprietário, o Cel.Alberto Rosa, devia ter sido um homem muito avançado para a sua época. A sede da fazenda era uma enorme casa em estilo espanhol, com grande quantidade de quartos, imensas salas e uma cozinha enorme. 
Em torno da casa, uns doze pés de Hortência floridas, azuis e rosa. Havia um enorme galpão, que era a ferraria; um curral grande para as domas; e duas cabanhas para o gado. Tudo em tijolo. Havia luz elétrica, graças a um gerador movido por um cata-vento colocado no topo de um silo enorme de tijolo. A luz elétrica permitia um modernismo na fazenda: a ordenha mecânica. 
Um outro modernismo: não era permitida a “monta natural”. Tudo era feito com inseminação artificial. O Cel. Alberto Rosa foi um homem muito influente em Pelotas, tendo sido um dos dois principais acionistas do Banco Pelotense, junto com Plotino Amaro Duarte. Foi também sócio do Coronel Pedro Osório, na firma Pedro Osório & Cia, que durou até 1922. Morreu em 1923. 
A única coisa velha na fazenda era o telefone. Era daqueles antigos, de manivela. A gente tocava a manivela, e dava sinal no Centro telefônico, no Capão do Leão. A telefonista atendia, a gente pedia o número, e ela fazia a ligação. Mas antes de pedir o número se batia um papo com a telefonista. Uma curiosidade: os números tinham só dois dígitos. O tio Damásio sempre foi uma pessoa muito caprichosa. Isso era facilmente detectável pelo cuidado especial com que ele tratava os livros da sua infância, e que me emprestava para ler. Com o mesmo capricho ele cuidava da Palma. Para o Instituto, a Palma era “a jóia da corôa”. 
Tanto era assim, que quando chegava algum visitante do exterior no Instituto, eles levavam para mostrar a Palma. O churrasco de comemoração ao Dia do Agrônomo, coisa para mais de cem pesoas, era realizado na Palma, à sombra de uma meia dúzia de figueiras enormes, centenárias, alinhadas em seqüência. E um enorme braseiro em uma vala aberta no chão. O legítimo churrasco gaúcho. 
Eu, com oito anos de idade, acordava às 6 hs.da manhã para acompanhar de perto todas as atividades de preparação do churrasco. O tio Damásio andava sempre vestido de bombacha e botas sanfona. Na cintura um cinto largo. E no cinto um chaveiro. Mas não era um chaveiro qualquer. Era um ”senhor” chaveiro, com mais ou menos umas quinze chaves. Quando a gente via ele de frente, a primeira coisa que se via eram as chaves na cintura. 
Umas duas vezes por semana, o tio Damásio organizava, à tardinha, um joguinho de futebol com os empregados. Ele comprava a bola, do tipo oficial. Os empregados tiravam as botinas, ficavam de pés descalços, e arremangavam as calças. O tio Damásio era o único que jogava de botas. Passados muitos anos eu fui compreender isso. Menino rico, filho de família tradicional, nunca brincou com os pés descalços. A pele do seu pé não agüentaria pisar naquela grama.

Baixinho, gordinho, de botas, quando ele corria atrás da bola, o chaveiro ia sacudindo na cintura, batendo na anca. Era uma cena hilária. Tinha um empregado, um alemão de cabelo bem amarelo, de mais ou menos um metro e oitenta e tantos, forte como um touro, que quando tirava as botinas, os pés deviam ser 46. Os dedos dos pés enormes e grossos, abertos, espalhados. Não é à toa que era chamado de “Pé-de-Anjo”. Esse alemão era o único que, descalço, entrava em uma bola dividida com o tio Damásio, de botas. Esse ambiente criado pelo tio Damásio, essa postura liberal, criava nos empregados um sentimento de igualdade, que se refletia no seu comportamento, facilmente detectável na alegria com que trabalhavam e no carinho com que me tratavam."