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sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Rafael Pinto Bandeira e a ocupação das primeiras sesmarias na região sul do Rio Grande do Sul

Trecho extraído de: SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul - século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1983, p. 50-51.


"Uma das principais causas do envolvimento de muitos em contendas e pleitos entre vizinhos confrontantes era o fato de não haver um tombo exato de cada distrito pelo qual se pudesse conhecer o verdadeiro título dos possuidores e as balizas certas das suas possessões. Por isso, o Vice-rei preconiza a existência no Rio Grande de um ministro com disposição e saúde, designado especialmente para fazer o tombamento das terras. A solução foi expressa nos seguintes termos: "... me parece seria muito conveniente que devia atender a todas as terras do Brasil se estabelecesse imediatamente no Rio Grande, despachando Sua Majestade um ministro escolhido, com gênio e saúde própria para este trabalho e com o ordenado e predicamento que for servido para tombar todas as terras daquele continente e assinalar os limites certos de cada um dos possuidores, conforme os títulos que se acharem nas circunstâncias de se poder legitimar, havendo também por devolutas todas as mais que o abuso tivesse introduzido ou o dolo e enganos confirmados na parte com que se acharem".

   Com isto pretendia o Vice-rei acabar com a grande desigualdade que vinha acontecendo na distribuição das terras. É que havia moradores que em seu próprio nome ou no de outros se achavam na posse de muitas datas para depois venderem-nas. O Vice-rei Luís de Vasconcelos tomou conhecimento também dessa situação e a denunciou ao ministro Martinho de Melo e Castro, tanto em seu famoso relatório como no documento que vimos citando. Ao tratar deste assunto, o Vice-rei escreve: "Neste gênero de negócio escandalosíssimo, há aí muitos que se têm feito proprietários da maior parte daqueles terrenos e das suas melhores situações, para os poderem vender por alto preço a outras pessoas que vão continuando igualmente na posse ilegítima, por ter sido fantástico e ilusório o primeiro título de sua concessão com que mais é com ela se contentam por ser impraticável entrar neste exame de outro diferente modo pela grande confusão e desordem em que se acham os mesmos terrenos"

   O pior de tudo é que os principais comandantes militares estavam quase sempre envolvidos não só nos negócios desonestos das terras como nos contrabandos. Era esse o caso do coronel Rafael Pinto Bandeira, comandante do continente do Rio Grande. Homem cujos feitos militares enobrecem o seu nome, profundo conhecedor da terra e da gente da região, pôde com muita coragem e bravura defender os interesses luso-brasileiros nas muitas refregas que teve com os espanhóis. Mas não podemos negar que se utilizou de seus conhecimentos não só para participar dos negócios escusos, que então se faziam para a obtenção de sesmarias, como também dos contrabandos de gado e de couros. A esse respeito expressa o Vice-rei: "Um daqueles escandalosíssimos proprietários que têm feito por este estranho modo as maiores usurpações é o coronel Rafael Pinto Bandeira que, fazendo-se absoluto e temido de todos, em razão do autorizado posto que ocupa e aproveitando-se daqueles conhecimentos que tem do país, para fazer a sua escolha livremente, se acha com a sua numerosa parentela ocupando grandes extensões de terrenos e os mais bem situados, estabelecendo com duas largas estâncias para a criação de animais e tirando de outros a utilidade da venda que faz a diversas pessoas. Para poder assim praticar com mais rebuço não lhe tem esquecido o estratagema de requerer as sesmarias em nome de outros supostos que só fazem figura no requerimento sobre o qual talvez ele pode ser ouvido como comandante da fronteira do Rio Grande, mas verdadeiramente é ele que se empossa do terreno, que o desfruta e que vende".


   Como se vê, há um desvirtuamento da instituição das sesmarias. Seus objetivos eram ocupar, povoar a terra e fazê-la produzir. Nestas condições, o sesmeiro havia de possuir algum recurso em dinheiro e escravos para cultivar a terra. Aliás, esta era uma exigência de ordem legal que geralmente não era cumprida no Brasil. Mas no Rio Grande do Sul a posse das terras já estava provocando tamanha confusão que se tomava necessário providências urgentes. Sobre este assunto, dizia o Vice-rei: "Além de se verificarem as condições com que Sua Majestade concede as sesmarias e ser indispensável que os sesmeiros tenham escravos para cultivar as terras como esta última cláusula não pode deixar de faltar em muitos dos pretendentes por nem terem estes sempre trabalhadores próprios, nem naquele país haver semelhante uso em todas as concessões antigas. Seria muito conveniente que todos aqueles sesmeiros fossem obrigados à proporção das suas sesmarias a conservar nelas aquele número de indivíduos que parecesse necessário a cada uma, regulado conforme os diversos serviços da lavoura e da criação de animais".

   Para o cumprimento dessas finalidades, sugeria o Vice-rei que nenhum requerimento fosse aceito sem que primeiro constasse o número de indivíduos que deviam ficar na gleba. Deveriam ser registrados em livro, no qual deviam constar nomes, local de nascimento e filiação. Por outro lado, esses indivíduos deveriam ser matriculados no livro próprio da provedoria: "A onde se deve obrigar o sesmeiro a conservar os mesmos indivíduos e a continuar também o serviço ou da lavoura ou da criação de animais, para o que lhe foram concedidos e assinalados os terrenos nos seus próprios limites e confrontações".

   O sistema proposto pelo diligente Vice-rei, além de possibilitar maior progresso da lavoura e dos rebanhos, permitia às autoridades um conhecimento perfeito e atualizado da verdadeira situação econômica do Rio Grande. De outro lado, permitia-lhes em caso de urgência resolver com segurança os problemas militares do Continente. Além disso, as sugestões referidas, no contexto da política de fomento ultramarino, tinham em vista promover o giro comercial com a circulação de dinheiro e mercadorias. Se não todas, pelo menos parte das sugestões do Vice-rei foram postas em prática no Rio Grande. Uma delas, de grande alcance, que parece ter sido praticada, foi o tombamento das terras com a respectiva conferência dos títulos de posse. No período de 1784 a 1786, todos os comandantes de distritos fizeram relações de todos os moradores que possuíam terras, bem como dos animais que criavam nelas. Das referidas relações constavam ainda as medidas da sesmaria e também as confrontações. Feito isto, as pessoas que fossem encontradas na posse ilegal de terras, de acordo com o interesse público, seriam despejadas delas."