Trecho extraído de: SILVEIRA, Aline Montagna da. De fontes e aguadeiros à penas d'água: reflexões sobre o sistema de abastecimento de água e as transformações da arquitetura residencial no final do século XIX em Pelotas-RS. São Paulo: Tese de Doutoramento do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da USP (Orientadora: Profa. Dra. Beatriz Mugayar Kühl), 2009, p. 147-152.
"A COMPANHIA HIDRÁULICA PELOTENSE
O contrato do abastecimento de água potável de Pelotas foi finalmente
efetivado em 1871, com o empresário Hygino Corrêa Durão, comerciante da cidade de
Rio Grande. Mas a transição para o novo sistema de abastecimento ocorreu
lentamente. Ainda no mês de janeiro deste ano a Câmara Municipal previa despesas
com a abertura de cacimbas para o abastecimento de água potável na cidade.
Nesse período esteve em Pelotas o viajante Augusto de Pinho que, entre suas
impressões do local, destacou o abastecimento de água da cidade. O relato do
viajante apontava que “a água de que aí se faz uso é da chuva; conduzida dos
telhados e das sotéias, há umas cisternas feitas de tijolo e terra romana a que dão o
nome de algibes”. Além disso, Pinho comentava a incorporação de uma companhia,
com o objetivo de abastecer a cidade com água potável e citava, ainda, a excelente
qualidade da água que serviria à cidade. Esse período coincide com o surgimento da
Companhia Hidráulica Pelotense.
O relatório da Presidência da Província de 1871 registrava que o contrato para
o abastecimento de água de Pelotas fora firmado em dez de maio deste ano, com
Hygino Corrêa Durão, que apresentou a proposta mais favorável para a execução do
serviço. O relato do Presidente destacava que estava definida “a realização de uma
das mais urgentes necessidades daquela importante cidade”.
O contrato firmado entre o empresário e a província estabelecia as obrigações
do contratante, definindo as diretrizes essenciais para a implantação do sistema de
abastecimento de água da cidade.
As especificações estabelecidas no documento indicavam a execução da
canalização em tubos de ferro betuminados, desde
o arroio Moreira confluente do arroio Fragata, prolongando o
encanamento desde o ponto denominado Cachoeira, situado na
chácara de D. Arminda da Cunha, até ao interior da cidade de Pelotas
e a construir no supramencionado ponto de partida uma represa e os
tanques de depósito necessários, com capacidade para conterem três
mil metros cúbicos d’água, e na cidade um ou mais reservatórios com
igual capacidade.
A escolha do manancial, considerando-se a vazão e a pureza da água,
apontava para o mesmo curso d’água desde a proposta apresentada por Cordeiro em
1869. A qualidade da água, límpida antes de entrar no encanamento, era outro
requisito do contrato e, por isso, indicava-se a construção dos tanques junto à represa.
Além disso, no artigo 2o. estabelecia-se que deveriam ser instalados “quatro chafarizes,
que, além de seus respectivos repuchos, tenham cada um quatro torneiras ou
bornefontaines, com candelabros para o serviço diário e noturno [...] os chafarizes
serão de ferro bronzeado e serão em tudo iguais aos desta capital”. Ainda em
relação às obras, o documento determinava que poderiam ser arrendados anéis e
penas d’água, edificadas casas de banho (sujeitas à inspeção da polícia) e
estabelecidos lavadouros públicos.
O contrato definia ainda o preço da água a ser comercializada, regulamentando
que o valor máximo para o barril de vinte e cinco litros era vinte réis nos chafarizes, e
dez réis nos anéis ou penas. Estabelecia, ainda, o fornecimento de água gratuitamente
às repartições e aos edifícios públicos provinciais, gerais e municipais, que se
responsabilizariam pelas despesas da canalização e da distribuição interna.
Os prazos foram rigorosamente estabelecidos no contrato e seu
descumprimento acarretaria futuros problemas à companhia. No documento foram
firmados os períodos de seis meses para a apresentação do projeto de execução das
obras (sujeito à aprovação do governo) e de oito meses para o início das mesmas,
ambos a contar da assinatura do contrato. No caso de ocorrer a incorporação da
companhia, fixou-se o prazo de três meses, após a aprovação dos estatutos, para a
primeira exigência. O documento previa ainda a conclusão das obras da
canalização geral e da colocação dos chafarizes em trinta meses. A transferência do serviço ao poder público era indicada na autorização para a desapropriação da
empresa, que só poderia ocorrer trinta anos a contar da data de realização das obras.
A Hidráulica Pelotense teve dificuldades em cumprir uma série de prazos
estabelecidos no contrato firmado entre Hygino Durão e a Presidência da Província.
Esses fatores levaram a atrasos recorrentes no pagamento dos juros de 7% ao ano,
pagos semestralmente pelo governo, sobre o capital máximo investido de
500:000$000.
O contrato de Pelotas estipulava a despesa máxima de dez por cento do valor
total do contrato (50:000$000) para investimentos preliminares, que compreendiam levantamentos e correção do projeto hidráulico e seus detalhes (situação que gerou
diversos problemas em Porto Alegre), montagem de uma comissão para engajar
operários e remuneração ao incorporador da companhia.
As facilidades que o governo oferecia à implantação do sistema abrangiam as
desapropriações e a isenção do pagamento de taxas. Quanto às primeiras, propunhase
a realizar as desapropriações necessárias à realização das obras (à custa da
empresa) e em relação à segunda oferecia auxílio na obtenção, junto aos poderes
públicos, de isenção de direitos de importação sobre os materiais necessários para a
realização das obras.
O documento determinava que o projeto de execução fosse fiscalizado por um
engenheiro indicado pela província, e que o assentamento da canalização de água
deveria incluir as ruas principais e mais povoadas da cidade, entre as que terminam na
praça Pedro II e no largo da Igreja.
Essa delimitação acabou gerando sérios problemas quanto a definição dos
locais destinados aos chafarizes. Entretanto, observa-se que, apesar da canalização
não contemplar a zona portuária, a empresa instalou um chafariz na praça Domingos
Rodrigues, e outro ao sul, além da praça Pedro II.
A contratação de licitantes para a implantação de obras públicas foi um fato
recorrente no período, assim como a incorporação das companhias e a transferência
dos contratos para empresas privadas. Essas transações consistiam em práticas
comuns na época, como se percebe na implantação das Hidráulicas Porto-Alegrense,
Pelotense e Rio-Grandense (esta última também incorporada por Hygino Durão, em
parceira com João Frick). A facilidade e o conhecimento dos trâmites dos processos
de licitação junto à Presidência da Província deveriam contribuir para a permanência
dos licitantes (empreiteiros) em cargos das empresas incorporadas. É o que se nota
nas hidráulicas de Pelotas e Rio Grande, onde Hygino Durão e João Frick assinaram
os contratos para executar o abastecimento de água encanada e ambos
permaneceram como gerentes das empresas incorporadas.
Hygino Durão foi responsável por outras obras no Estado. Em Rio Grande,
esteve envolvido nas licitações para as obras no cais, em junho de 1869. Foi possível
identificar, ainda, que a ponte sobre o rio Piratini (conhecida como Ponte do Império),
contratada com Durão, foi entregue ao trânsito público em vinte e um de novembro de 1870. Sabe-se também que apresentou proposta ao governo provincial para a
execução das pontes sobre os rios Camaquã e Arroio Grande.
Além disso, identificou-se um projeto de entroncamento entre a estrada de ferro
Rio Grande-Bagé e a linha de Porto Alegre-Uruguaiana, que foi mandado executar por
Hygino Durão, sob a direção dos engenheiros A. Primrose, Carlos Alberto Morsing e
do chefe de escritório João Frick. Esse documento evidencia que, em 1876, ainda
mantinha relações de trabalho com Frick e com Primrose (que trabalhou também nas
obras das companhias hidráulicas de Rio Grande e de Pelotas).
O viajante Mulhall referiu-se a Hygino Durão, relatando que além do
abastecimento de água potável, “o mesmo cavalheiro é concessionário da projetada
estrada de ferro de Rio Grande a Pelotas (35 milhas) e deverá em breve ir à Inglaterra
para tratar desse assunto”. Comentava ainda que, ao visitar as imediações da
Cascata, encontrou um engenheiro alemão encarregado dos estudos e da
demarcação da rota para o novo aqueduto da cidade.
Weimer cita brevemente a atuação de Hygino Corrêa Durão, referindo-se a ele
como arquiteto, envolvido somente com projetos viários e de urbanização. A
atuação de Hygino nas obras citadas nos leva a supor que se tratasse de um
empresário, empreiteiro de obras de construção civil, já que os projetos que
encontramos apresentavam a assinatura de outros profissionais, relacionados
diretamente à autoria (projeto) e à construção (execução) das obras.
Higyno Durão atuou tanto na implantação da Companhia Hidráulica Pelotense
como na Rio-Grandense, ambas no mesmo período: seu trabalho como empresário
consistia em participar das licitações abertas pela Presidência da Província, assinar o
contrato e adquirir os privilégios da execução dos serviços, comprometendo-se em
incorporar a companhia, vendendo seus direitos e obrigações. No caso da Companhia
Hidráulica Pelotense, Hygino tornou-se gerente da empresa e empreiteiro das obras.
Em 1872, como gerente, viajou para a Europa, provavelmente para tratar de
seus empreendimentos (o relatório de junho deste ano citava que desde janeiro
encontrava-se no exterior e destacava, ainda, que a execução das obras ficaria a
cargo de João Frick, seu sócio na implantação da Hidráulica Rio-Grandense). Os jornais de Pelotas da década de 1870 noticiavam os trabalhos de Durão na Hidráulica
Pelotense.
Não está de todo concluída essa magnífica obra, porque faltam, ainda
algumas chapas, que se esperam brevemente, mas pode-se desde já
avaliar da sua incontestável e grande importância. Nunca ninguém se
persuadiu que o empresário da Hydraulica Pelotense cumprisse tão
satisfatoriamente a condição do seu contrato que se referia à
construção do depósito d’água, nem tampouco jamais passou pela
idéia de alguém que fizesse uma obra tão gigantesca e admirável.
Hoje, ante os fatos, é de rigorosa justiça restituir-lhe os créditos que
se haviam posto em dúvida e um dever imprescindível encarecer o
seu procedimento. Nós, que fomos sempre os primeiros a censurá-lo
quando de censura o considerávamos merecedor, queremos também
ser os primeiros, por desencargo de consciência e por amor à
verdade, a tecer-lhe os louvores de que se tornou digno pela maneira
honrosa e mesmo superior a toda expectativa por que desempenhou
aquela parte do seu contrato.
Em 1877, o relatório da Companhia Hidráulica Pelotense referia-se a uma
negociação entre a empresa e a testamentária de Hygino Corrêa Durão, o que indica o
seu falecimento provavelmente neste ano. No mesmo período João Frick relatava que
na Hidráulica Rio-Grandense “tem continuado a desempenhar os compromissos a que
individualmente ficou obrigado pelo falecimento de seu corresponsável nesta obra, o
Sr. Hygino Corrêa Durão”.
A INCORPORAÇÃO DA HIDRÁULICA PELOTENSE
A primeira diretoria da Companhia Hidráulica Pelotense foi composta por
personalidades oriundas de famílias influentes da região: formada por João Simões
Lopes (visconde da Graça), Antônio José de Azevedo Machado Filho (filho do barão
de Azevedo Machado) e Felisberto Ignácio da Cunha (barão de Correntes), teve como
seu presidente o primeiro."