A madrugada do dia 29 de Janeiro de 2009 já é a data mais marcante da história recente do município de Capão do Leão. Talvez nenhum outro fato político ou social desde a emancipação sobrepuje aquilo que aconteceu naquele momento. A cidade mergulhara no caos completo.
Num verão não muito quente, mas que, até então, tinha se mostrado extremamente seco (não havia chuvas intensas desde novembro), o dilúvio que ocorreu entre aproximadamente o meio-dia de 28 de Janeiro até às 3 horas da manhã do dia 29 surpreendeu a todos. Não, surpresa não é a palavra. Choque – esta é a palavra! Chocou a todos!
A água invadiu áreas do município que, seguramente, nos últimos 50 anos jamais tinham registrado alagamentos. Lugares ditos seguros contra o problema dos alagamentos foram tomados pelas águas. A enchente não poupou nada... casas, animais, plantações, gente!
Vamos recapitular, porém.
Quando a chuva iniciou ao meio-dia, as pessoas deram graças aos céus pela água que chegava para molhar a terra seca, castigada pelas últimas semanas de estiagem. Passou-se a tarde e a chuva prosseguiu firme e constante. Veio a noite, e já se notava que havia chovido o suficiente, pois em alguns locais verificava-se grandes poças d’água e rios de lama descendo rumo aos arroios. Como desde a tarde, o fornecimento de energia elétrica estava interrompido, a maioria das pessoas dormiu cedo, despreocupada que aquela chuva pudesse causar algum dano (afinal, estávamos em plena seca!). Pois bem, aí começa a escalada do desespero. O último ônibus da linha Pelotas-Capão do Leão (meia-noite) não chegou ao município. Pessoas que estavam naquela cidade, mesmo sem depender de ônibus, não retornaram aos seus lares. O que estava acontecendo? A ininterrupção da chuva anunciava o pior: enchente.
Entretanto, é bom que se recorde da Enchente de 2004 em Capão do Leão. Ela teve certos limites e uma determinada velocidade. Isto é, atingiu certas áreas do município e as águas subiram não lentamente, todavia de forma que as pessoas puderam sair de suas casas. Só que agora era diferente. A água subiu muito rápido. Como os mais atingidos relatam: em questão de quinze minutos, quase um metro. Era desespero puro! Pessoas saindo de suas casas correndo, levando somente a roupa do corpo. Quem saía em direção à parte alta da cidade, pelo caminho gritava a quem quer que fosse que abandonasse sua casa, pois as águas vinham de modo impetuoso. Nos campos, cobras, gambás, preás e outros animais fugiam em disparada aos lugares secos, infestando a casa daqueles que ficaram a salvo da enchente. Ouvia-se choro e gritos. Motocicletas, carros, veículos públicos, bicicletas transformaram naquela madrugada medonha o trânsito leonense assemelhado ao volume dos grandes centros do País. Era gente fugindo, mas também muita gente socorrendo. Isso não se pode negar, a solidariedade em meio ao nefasto breu daquela noite dantesca! Vi carros em valões e botijões de gás boiando sobre aquelas águas furiosas.
Ninguém dormiu, não havia motivo para dormir. Quem fugiu da enchente e pode se refugiar estava em pânico. Quem socorreu e podia agradecer por ter uma casa a salvo, não conseguia entender o que era aquilo.
Cinco e quarenta e cinco da manhã... surgem os primeiros clarões de um dia nublado e cinzento. Seis e vinte da manhã, a claridade já permite vislumbrar o que aconteceu. A Avenida Narciso Silva estava invadida por grandes porções de areia, que se espalharam, levadas pela enxurrada. A água tinha vindo até as proximidades do Pronto-Socorro Municipal. Nas vicinais da Rua Edmundo Peres, a aglomeração de gente era impressionante e o estrago também. Impressionante mesmo foi o que aconteceu na Rua Alexandre Gastaud e nas cercanias do Arroio Teodósio. Casas tapadas d’água, pessoas empoleiradas nos telhados. Até mesmo a parte baixa do Cerro do Estado (próximo à Via-Férrea) estava inundada. Além da Ponte do Teodósio, o que se poderia saber: estávamos ilhados!
Seis e meia da manhã: as pessoas começam a saber da morte da criança de colo no Teodósio. Opa, algo estava fora dos eixos: enchente e morte... como? Em 2004, não tivemos isso. Bem como nas secas de 1985, 1989 e 2005, não tivemos isso. Nos vendavais de 1986, 1995 e 1998 (quando ficamos seis dias sem luz), não tivemos isso. Mesmo com o granizo de 2004, não tivemos isso. Nenhuma tragédia natural até então tinha trazido a idéia da morte aos leonenses. Perdia-se tudo o que fosse, até mesmo em incêndios involuntários, mas nenhum conterrâneo havia perdido a vida num acontecimento meteorológico na área do município. A situação era diferente! O dia revelou o “circo de horrores” da madrugada.
De cada lado do município vinham notícias de mais óbitos. Alheios à dor das pessoas que perderam muito ou tudo com a enchente, “f.d.p. ordinários” aproveitavam a situação para o saque e o roubo. Pessoas que precisavam de tratamento médico estavam “presas” sem poder ir aos hospitais em Pelotas. Logo, faltou água nas torneiras. À noitinha, era a busca por água potável e velas transformando-se em real aventura. No Departamento de Assistência Social, a fila era grande em busca de alimentos e material de limpeza.
Nestas horas, a gente vê também, infelizmente, a estupidez humana.
Provavelmente, oriundo de um outro planeta, sem saber o que se passava (é a única explicação plausível), um senhor reclamava em alto e bom tom o fato dos serviços da prefeitura não estarem funcionando. O dito senhor queria pagar o IPTU e, ao chegar à Secretaria de Finanças, encontrou o setor fechado. Diga-se de passagem, que, o Centro Administrativo Municipal também sofreu com a inundação, havendo grande perda de computadores e papéis. Por outro lado, vários funcionários se uniram a torrente de mobilização em prol das vítimas da enchente. Não havia como haver expediente normal, é óbvio. Só que o infeliz não entendia e, retornando à sua morada inexpugnável à chuva, resmungava contra o próprio município, declarando ser este um “buraco”.
Outro senhor, não muito bem afortunado em suas observações, atentava que as próprias pessoas que sofreram com a enchente sabiam dos que estava lhes reservado, pois viviam em área de risco. Área de risco? Ora, pois. As ruas Catão César Madruga e Teófilo Torres são mais do que cinqüentenárias. Acaso, famílias inteiras vivem ali há décadas por puro sadomasoquismo? Não, definitivamente não. O que aconteceu foi fora do normal. Já vi alagamentos nestas zonas de molhar o tornozelo ou as canelas, mas nada igual a isto. Outra coisa: por volta das três e meia da manhã daquele 29 de Janeiro, as águas formavam verdadeiras cachoeiras na esquina da Avenida Narciso Silva e Rua Rouget Peres. Pois é, amigo leonense, indago-lhe: já vistes aquela área alagar? Não me lembro sequer de ter havido alguma vez poções de água naquela região. A sucessão de insensibilidades e declarações mal-feitas se seguiu por parte de alguns. Sem saber o que estava realmente acontecendo, incautos elegiam inúmeros culpados pela enchente, mas não se dispunham a estender o braço e ajudar os desabrigados. Sem contar aqueles que praguejaram o cancelamento do Carnaval e da Festa da Melancia.
A noite do dia 29 para o dia 30 de Janeiro ainda foi de muita apreensão. Por volta das vinte horas, iniciou-se novo temporal. Ao menos, até a meia-noite, onde os tocos de vela espantavam a escuridão fantasmagórica, muitas pessoas ainda não dormiam.
Começamos a ter contato com o mundo exterior a partir do dia 30 de Janeiro. Pululavam radinhos à pilha, desentocados de velhas estantes, sintonizados à faixas AM, procurando notícias sobre a enchente. Alguns lugares voltavam a ter pulso telefônico normal, dado que celulares e alguns números fixos estiveram completamente mudos durante o dia anterior.
Às dezessete horas, houve a religação da energia elétrica. As coisas estavam voltando ao normal, após o caos. Vimos estupefatos o primeiro telejornal regional às dezenove horas. No noticiário nacional, em vários canais de grandes redes de televisão, assistimos, sem muito a ter o que se orgulhar, o nome do Capão do Leão citado para todo o Brasil.
A noite do dia 30 para o dia 31 de Janeiro foi aquela em que podemos descansar embora ainda totalmente zonzos com o acontecido. Embora, digo: não estamos ainda totalmente restabelecidos.
A semana inicia-se como um grande recomeço para todos. Não vai ser fácil.
Nossa memória às vítimas da enchente.
Joaquim Dias